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O Caçador que é só de nome

 


Ao lado de um grande homem, um que o seja, está uma grande mulher, que seja só mulher. E ao lado desta estará este. Parece um salmo canónico, mas não é. Não tem nada de divino, tem tudo de humano. Falamos da harmonia das coisas. Assim devia andar o mundo, aos pares, dois fazem uma maior do que um só. É a filosofia dos axiomas simples, que podem levar a teses de mérito.

Esta regra devia cumprir-se em tudo: na vida das famílias, na vida das labutas, na vida dos prazeres transitórios. Sendo este o panorama, desta conversa enviesada que não se entende, damos de caras com a porta do restaurante O Caçador.

Entrados, devidamente instalados, recuperado o folego da catadupa de palavras para chegar a este ponto, podemos, agora relaxados, desfrutar de um bom repasto (o vinho é honesto).

Bochechas, Queixadas, Lagartos, não se trata de um manual de anatomia veterinária, nem o cabrito, nem o borrego. É de comida que se fala e juntamente com outras estrelas do menu variado, fazem a casa, de clientela que sabe ao que vem. Devemos, no entanto, deter-nos com mais vagar e atenção a uma certa sopa que é e não é sopa, um misturar sábio de ingredientes num roteiro que vai desde as leguminosas, às carnes e chouriços, um festim de comida reconfortante que faria caminhar um morto, tivesse este o dom da ressurreição e não sofresse de atrozes degenerativas.

É de uma sopa rica que se fala. Aporcalhada, já que do porco pediu as carnes, e não é uma qualquer brejeirice lexical. Esta sopa tem de tudo um pouco e deixa a dos ribatejanos a tocar castanholas e a fingir que não compete com mais nenhuma porque é a original. Que fiquem com esse convencimento e não se discute competências. O que é certo é que a aporcalhada do Caçador, é a melhor da Vila, e com este prémio fica contente a gerência e que venham provar que saem cheios e satisfeitos.

Este estabelecimento é gerido e trabalhado por uma família, o que nos traz de novo ao início da conversa, aquela história dos axiomas humildes, em que ao lado de um, estará outra, que fazem um, e juntando as filhas e o(s) genro(s), fazem um duplicado, uma força suficientemente somada para dar um bom resultado, o sucesso deste negócio familiar, às portas de entrada da Vila de Figueiró. E se vierem de propósitos únicos para saírem refastelados com a sopa, telefonem antes, não vá não ser o dia dela, que todos os dias não são os dias.

 

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