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As 14 estações do caminho do Homem


O Homem é condenado à morte

O homem é inocente do pecado que não cometeu. Outros homens, menos homens, condenam-no à morte.

 O Homem carrega a cruz às costas

Esses menos homens, invadem a terra do homem, destroem tudo e a possibilidade de ele continuar a viver, no único lugar que conhece e chama seu.

 O homem inocente percorre o caminho da sua cruz,

 O homem cai pela primeira vez

Titubeante, fragilizado, cai e sofre, custando-lhe levantar-se e enfrentar o caminho que não tem sentido percorrer assim.

O homem encontra a sua mãe

O homem olha olhos nos olhos os seus, sua mãe, seu pai, e chora, porque é impotente e não os consegue proteger do mal que se abateu sobre eles.

 Um homem como esse homem, ajudou- o a carregar a cruz

Um transeunte, homem seu igual, apieda-se e ajuda-o a carregar a cruz. Peso insustentável para toda uma humanidade, representa o peso do mundo, nesse homem triste e inocente, que a carrega,

     Uma mulher de nome Verónica limpa o rosto do homem

Uma mulher, corajosa como todas as mulheres, destaca-se da multidão de amorfos, e refresca a face sofrida do homem que nem consegue agradecer esse alívio momentâneo.

     O homem cai pela segunda vez

E volta a tropeçar, nas pedras desse caminho, e ninguém lhe estende a mão. Todos assistem como se fosse um espectáculo, esquecidos ou obnubilados de que também são homens, e que um dia, poderão ver-se no castigo de terem de arrastar uma cruz que não deveria ser a sua.

 O homem encontra os seus semelhantes

Todos baixam o olhar, por vergonha, por pena, por cobardia. E o homem, procurando com o seu olhar o olhar dos outros, vê o nada, a ausência, a desumanidade.

     Terceira queda do homem

Cada vez mais falho da sua força de homem, descrente já da sua inocência, o homem claudica e cai novamente. Levantar-se é um movimento quase impossível.

 O homem é despojado das suas vestes

No rebaixamento, na indignidade final, despojam-no dos atavios que cobriam a sua nudez, a sua intimidade, a pureza de ser um homem, ausente de culpa. Essa provação amoral doi mais que mil chicotadas.

 O homem é pregado na cruz

O castigo para o pecado que não cometeu mas que foi levado, na sua ingenuidade a acreditar, a incorporá-lo com sendo seu, é a dor lancinante e atroz de ser pregado a uma cruz, no cimo de um lugar despido, frio e inóspito, exaurindo-se do elã vital. E nenhum dos outros homens que assistem lhe vão dar de beber, ou limpar as gotas de sofrimento do seu rosto.

 O homem morre

E, como todos os homens, ele morre, sem ter tido o tempo de justificar a sua vida, imprescindível, porque homem. Divino.

O homem, morto, é descido da cruz

Vencido pela mortalidade e morto, um corpo físico sem mais préstimo, não sendo mais necessário estar pregado numa cruz, como exemplo, ou equívoco, do que seja, para os outros que estavam ali para olhar para ele, sem sentido, sem saberem porque o faziam, descem-no da cruz e jaz agora no chão frio, inútil e esquecido de que foi um homem.

 O homem é sepultado

Esse homem, de todos os cantos a que se quiser dar nome, geografias de todos os continentes, é um mártir, é ele que todos os anos renova simbolicamente o caminho da cruz, é o filho de outros homens como ele, gente comum, que não consegue compreender o deus que assistiu entediado e ausente, a crucificação do seu filho.

 

Palestina, Líbano, Síria, Líbia, Ucrânia, Venezuela, El Salvador, Honduras, Guatemala, a África quase toda, Birmânia, Tibete…….  Inumeráveis geografias de sofrimento atroz.

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