AS CRUZES

Tenho as malditas das cruzes que nem sei explicar bem; tenho bicos de papagaio, que até se ofendem, os ditos - a minha médica de saúde, então! – de dizer que os tenho, e o que sofro. Até o meu marido, porque se calhar não lhe estou a pagar o dízimo em géneros como seria o esperado, não atende os meus queixumes e bate-me desalmadamente e mais por isso.

Não sei se é mau-olhado, mas esperei dois anos e meio por uma consulta de um senhor doutor especialista e quando cheguei a esse dia, perguntou-me se tinha uma ressonância magnética. Eu não sabia que era preciso ter uma ressonância magnética para dizer ao mundo que tinha bicos de papagaio. E as dores que tenho e as dificuldades que isso me traz, pensei serem óbvias. Mas não. Reagendou nova consulta e pediu a dita ressonância, inserindo no sistema, porque o vi a teclar teclas no computador.

Esperei e esperei e nada. Uns senhores do hospital sem me conhecerem sequer, disseram que eu não tinha condições para fazer a dita coisa de magnética.

Não a fiz, voltei um ano depois ao senhor doutor especialista e ele perguntou-me o que estava ali a fazer, fazendo-o perder tempo, e eu, assustada com o que ele me disse, porque é um senhor doutor, até fiquei constrangida de lhe dizer que apesar de ninguém me dar atenção, os bicos e as cruzes já mal me deixavam viver sem sofrimento.

«Minha senhora, se fossemos operar todas as pessoas que nos chegam aqui queixando-se de bicos de papagaio, mesmo que venham a fingir que têm dor e arrastando os pés, o nosso país não tinha dinheiro para atender aqueles, por esse mundo fora, que doentes a sério, necessitam do nosso apoio nas suas situações únicas e que verdadeiramente carecem da nossa atenção e são referenciados – casos ainda mais urgentes esses – pelos senhores em quem depositámos voto, e não temos a mínima dúvida de crédito débil.

Também, se vivo assim há anos, porque não hei de aguentar que a morte me apanhe. É que depois, acabam-se os bicos de papagaio, e assim já deixo o meu lugar a outros que a bem da nação tenham a graça de receber tratamento adequado para as suas doenças influenciadas e argumentadas com poder.

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