Num lugar sem notícia, comunidade pouquíssima, ainda assim na aparência de viver feliz. Arremedo de sociedade aberta aos outros, ao forasteiro, não lhe faz perguntas, aceita-o.
Como pode um desconhecido, fugido de
algum horror, um pesadelo do mal, fazer-se anunciar contando todos os
pormenores, quando desconhecendo as palavras certas, não as sabendo pronunciar
e ser audível, preocupado que vem pela sobrevivência de procurar um local onde renasça
a sua prosperidade, uma vida a recomeçar?
Esta mulher veio e mal se deu por
ela.
Uma mulher com um olhar doce – ao
olhar com atenção e pormenor, é afinal um olhar de sofrimento, como se por
educação ela contivesse a dimensão do seu sofrimento, não o querendo revelar ao
mundo -, trabalha sem se dar conta dela, protegida pela luz ténue de uma
pequena loja numa rua quase sem moradores e movimento de vida, reduzida à sua
expressão mínima.
Na montra, óculo de salvação para o
calor dos dias com sol, uma bandeira da Ucrânia. Seria outra bandeira, tantas
infelizmente, as que podiam ser desfraldadas na superfície vidrada de uma loja.
As bandeiras não são a identificação
de um país, são como as línguas que se falam, a identificação de um povo de um
país.
A atitude, de quem colou a bandeira no
vidro, provavelmente foi dessa mulher de olhar doce, decisão corajosa com um
significado.
A pequena comunidade onde isto
acontece: uma bandeira-símbolo a chamar humildemente a atenção de transeuntes
ocasionais, acolheu com simpatia esta mulher, no entanto, nada sabe nem quer
saber do rasto que a trouxe em sentido único para esta terra.
Foi numa viagem turística improvável,
um rasto de enamoramento, pelo país, pelo sítio, pela língua, pelas gentes
simples e descomplicadas. Tal foi a força magnética dessa atração que a trouxe,
vinda de um país longínquo muito frio, irredutível na intolerância aos outros e
aos projectos de vida dos outros, a querer ditar as suas leis, absorvendo pela
força, os vizinhos e as suas casas e modos de vida.
E veio, e estabeleceu-se, sempre
vogando muito suavemente, quase transparente, não querendo incomodar. Essa
mulher veio de um fim do mundo imenso, inóspito onda há campos de concentração,
mas não aceita a barbárie nem a imposição da força pela guerra. Essa mulher
muito sofrida, com uma história pessoal de um drama inominável e que ela não
quer que se conte, recebe em sua casa refugiados desse país invadido e tem uma
posição firme nas redes, único local virtual onde pode projectar o seu grito de
repúdio. E por os acolher e por dizer porque os recebe (irmãos, não somos todos
irmãos?) é alvo constante de mensagens de ódio e de uma vingança prometida. Foi
banida da sua sociedade original.
Ela, aguenta o medo, essa terra, essa
gente, já não pode ser a sua. Agora, é esta pequena comunidade serrana, a sua
ideia de pátria. O lugar onde ainda se pode viver sem opressão aos pensamentos que
jorram sem impedimentos, abafados por forças do mal, influenciadores de
destruição maciça de uma sociedade livre e democrática.
Essa mulher discreta e de olhar doce
e uma voz igualmente melodiosa, que já cantou muitas canções, é um exemplo de
humanidade, mas poucos o sabem e poucos o devem saber, já que não se anuncia ao
mundo o bem que se faz. Faz-se.
Ela é um dos bens mais preciosos
desta sociedade e ninguém sabe disso.
Acreditando-se na possibilidade de
existência de seres evoluídos que trabalham na protecção das energias do Bem,
em contraponto com ao breu plúmbeo e desolador, ela é um desses seres, que
trabalham anónimos, no armazém dos fundos para que ainda seja possível admirar
a luz do sol, o calor de uma brisa suave, o cheiro dos perfumes e as cores
extasiantes e muitas das flores que ainda florescem.
Tenho muito orgulho em conhecê-la, a
essa mulher discreta que vive no meu pequeno mundo de paz e harmonia e tinha de
a nomear por ser um exemplo raro, e porque escrever esta pequena história
emotiva é a forma que encontrei de lhe prestar os meus respeitos e
agradecimento.
Comentários
Enviar um comentário