Avançar para o conteúdo principal

AS RELAÇÕES DO SENHOR M. COM A.





O senhor M. esteve vinte e um anos fechado em  casa, por decisão própria - um bom apartamento -,de onde não saiu, nem para cumprir obrigações, coisas básicas, pagamentos.

Aconteceu-lhe este fenómeno no dia em que foi a enterrar 
o amor da sua vida. Não a enterrou verdadeiramente enterrada, no sentido de uma pessoa viva que o deixa de ser - e morre – sendo obrigatório fazer-lhe o funeral.

Fê-lo no sentido figurado. Como o indica a lei e ele é homem de seguir os protocolos, encomendou as exéquias da descida à terra ou da subida aos céus (na direcção que se preferir), e a defunta, neste caso viva, seguiu o seu caminho. Ele, vestiu um luto que não abandonou mais. Uma vez vestido, é até aos dias que faltam cumprir, seguindo um hábito ainda recente, dos meridionais. Faziam-no mais as mulheres, imagens de fantasmas negro baço, algumas ainda na flor viçosa de uma idade por desabrochar, tão novas, azares da vida, maridos que morreram cedo demais.

O facto de ter abdicado de sair, não pode ser inteiramente atribuído a essa morte inesperada, que veio ensombrar a sua vida, que sempre foi morna. Em novo, até saiu bastante, raramente se negando à exceptativa de uma valente noitada, ou noitada valente, daquelas que deixam no dia seguinte, a sensação de uma boca de cortiça, e uma pressão intracraniana explosiva e imprópria.

Essa auto-infligida anulação da liberdade de movimentos em ambiente externo, foi um pretexto, uma ocasião. Aproveitou a oportunidade, e andando às avessas com o mundo desde que balbucia pensamentos com lógica, achou que seria um bom argumento para fechar definitivamente a porta, dedicar-se de alma e vísceras, ao seu pequeno mundo interior, para ele um grande mundo, completo de tudo o que lhe poderia fazer falta.

E o que lhe faz falta não são objectos, nem prazeres, nem redundâncias. São alimentos, de ordem espiritual. Artes, e por que não, também e sim uma espiritualidade, não canónica, de traço fino, uma característica sua e pessoal de ver o universo com olhos de sensibilidade. Um naturalista.

Mesmo cuidando-se e ele é uma pessoa regrada. Não acontecendo nada de imprevisto, terá como muito mais trinta anos de vida (pensou assim que se fechou em casa). Esse tempo aproveitado ao máximo, sem desperdício de minutos em actividades fátuas, dar-lhe-á a oportunidade de ler uns milhares de livros, alguns de que se arrependerá a seguir a terminá-los, uns tantos bons, e alguns, espera, tesouros inesperados. Será também um tempo para ouvir música, olhar sem se cansar para as pinturas que conseguiu reunir com as posses que teve, razoáveis.

Por último, mas igualmente ao nível de importância das anteriores, olhar simplesmente para o céu azul, ou não, límpido ou densamente nevoado, desde o ponto estratégico do seu terraço, deitado na espreguiçadeira de tela de lona, o objecto mais cómodo com que convive desde que se conhece e que o tem acompanhado em todas as casas por onde passou (herança de uma avó que era dada à vida contemplativa, que gastou a sua, deitada nessa cadeira-cama, a pousar um olhar melancólico sobre a paisagem que o mundo lhe apresentava: sempre a mesma porque a cadeira nunca saiu do mesmo sítio, um terraço da casa agrícola de família, em terras do demo).

Quando partir, se alguém se vier a deitar nela, que tenha tão bom proveito quanto ele teve. De resto, não vai ter tempo apesar de dispor de uma eternidade, para ter saudades nem da espreguiçadeira, nem dos livros, nem dos quadros, e muito menos da musica, uma matéria que ainda está para se catalogar num estado da matéria. É que por muitas volta que se dê, não se a coloca em nenhum dos existentes: o líquido, o sólido, ou o gasoso.

O Senhor M. mantém contacto com o mundo através de uma corda que rola sobre uma roldana montada no terraço das águas furtadas, e que transporta uma cesta de verga que serve para baixar as folhas-pedido e subir os pedidos das folhas, ou seja, víveres, objectos de higiene, e livros.

O seu agente de ligação com o real, lá em baixo, nos rés-do-cão, onde as pessoas vivem a maior parte do seu tempo (já não o senhor M.)é o A. que não é tratado por senhor visto ser um ser de nível inferior (o preconceito ainda é o que é),rapaz, agora homem, que vive praticamente nesse Largo, filho de uma varina que já morreu, de verdade, e o deixou às suas custas na vida, ou seja, obrigado a executar todos os pequenos ou grandes trabalhos que lhe caiam ao colo. Neste caso, é o moço de recados do senhor M.

O que A. Mais gosta é de ir à livraria do senhor P. aviar as encomendas do senhor M.. Gosta, porque sai do Largo, passeia-se, espaira vistas, assobia, piropeia e olha descaradamente para os rabos das mulheres, prática esta comum entre meridionais.

E assim é a vida de um e de outro. Um em reclusão, outro em liberdade. Completam-se, criando as compensações de que o universo necessita para seguir em frente sem depressões.



Comentários

Mensagens populares deste blogue

AI DO QUE GOSTEI E DO QUE GOSTO

  Gostei da alcofa pousada na marquise onde entrava o sol com abundância e a minha avó costurava. Gostei do colo da minha avó.   Gostei que me afagasse os lençóis ao deitar.   Gostei de alguns tons escuros, os das noites, outros não.   Gostei do silêncio da noite, gostei em geral dos silêncios. Gostei de ouvir num radio a pilhas músicas que me fizeram sonhar sonhos bons. Gostei do cão Tôto, de caça, onde cavalguei no pátio, a imaginar-me cavaleiro. Gostei daquela casa onde só me lembro do parapeito da janela, onde presumo que aos fins de dia eu e a minha avó víamos as pessoas a passar na rua e nós, abeirados do beiral as cumprimentávamos. Gostei de odores que já não identifico. Gostei da tia Rosa, mulher ainda mais pobre que nós a quem dávamos de comer e ela, em troca, me dava todo o seu amor porque nunca teve ninguém seu. Era eu. Gostei do carro de bombeiros que o meu avô me ofereceu. Tinha uma sirene. Era único. Gostei do primeiro livro de quadradinhos, contava

BERLINDES

Eram berlindes e guelas, os primeiros mais pequenos, os outros, mais vistosos, abafavam os berlindes. Eram de vidro cheios de cor, muitas, com padrões que davam ao girar a sensação de movimento encantatório. Compravam-se nas papelarias de bairro, pequenas superfícies habitualmente familiares que vendiam de tudo de uma forma absolutamente eficaz e personalizada. Estabelecimentos, não superfícies, designações de um presente deselegante, um nome que soa estranho e é frio. Os proprietários e os empregados sabiam os nossos nomes. Podíamos levar e pagar depois, numa contabilidade honesta que se fazia no livro dos devedores, preenchido a lápis de carvão. Este calhamaço era uma história do negócio, onde se desfiavam listas de nomes e produtos e datas. Raramente era usado para lembrar os atrasos: ninguém queria estragar relações de boa vizinhança, num tempo em que a honra e a honestidade eram valores não transacionáveis. Uns buracos no chão com uma distância entre si, medi

COPOS E GAJAS BOAS, DE PREFERÊNCIA

De manhã se começa o dia, dizia a minha querida avó, mulher avisada, que vestia de preto, tinha um buço pronunciado e gostava da pinga às escondidas. Como quem sai aos seus, aos seus sai, já enfiei dois medronhos, para dar energia a enfrentar o dia que dá trabalho, e até chegar ao fim, é uma peregrinação quase religiosa ao botequim do chico. Pelo menos tenho fé em ir lá, é uma espécie de purificação do meu interior. Agora só bebo sininhos, estou em dieta alcoólica, só pequenas quantidades (de cada vez claro). Não se pode dizer que saia caro. Cada sininho são 30 cêntimos. Um copo de três, cinquenta cêntimos. Apesar de alguém desavisado poder estar em desacordo (está longe, não vê, está mal informado), sou uma pessoa poupada: só bebo um de cada vez. Se descontar de todos os que bebo, as ofertas, os brindes às efemérides de cada parceiro que frequenta o botequim, e os que o Chico se esquece de cobrar, gasto realmente muito pouco. Sou portanto no Sul, um dos homens mai

CAVALO-MARINHO

  Na distância do tempo que leva a vida a passar, as imagens mais antigas confundem-se, fundem-se mesmo, é difícil apurar certezas. Vejo-me a olhar fascinado e miúdo, a primeira vez, um cavalo-marinho. Ressequido, mas conservado, pousado na palma da minha mão. Se na altura conhecesse uma palavra mais pomposa do que renda, diria filigrana. Aconteceu quando estava de visita a uma casa liliputiana, de tios meus. A meu ver uma casa cheia de misteriosos e pequenos tesouros, que ia descobrindo na curiosidade de criança, abrindo gavetas e mexendo em prateleiras. Uma casa que tinha um olho de vidro da vista direita da minha tia, pousado no fundo de um copo cheio de água na mesa de cabeceira, a olhar para mim com um olhar espantado, esgazeado, e eu a olhar para ele, a princípio receoso,  depois a querer saber o que havia por trás de um olho, já que os vemos sempre colocados nas órbitras dos usufrutuários e não sabemos o que está por trás. Este olho de vidro é a prova óbvia que a minha tia ficou

DO AMOR INCONDICIONAL - 1-DO PODER

Nesta pluralidade que é a natureza, nesta obra dos acasos ou de causas superiores insondáveis, há seres cuja beleza cativa o mundo. A beleza é o argumento mais forte do poder. Dança à sua volta, danças do ventre, sensuais, húmidas, viciantes. Sabe rodeá-lo e tecer a sua teia invisível mas inquebrável, ata-o de mãos e pés, imobiliza, inteiramente hipnotizado. Perante a força irracional que irrompe de uma obra sinfónica, para pôr um exemplo de beleza superior, o homem baixa as defesas, entrega a sua sorte no embalo da música, extasiando-se é levado por essa torrente de emoções. Os efeitos dessa mistura explosiva, do casamento da beleza com o poder leva os seres a atitudes que não se alcança imaginar, coisas fora da lógica. Práticas do bem e o mal, sem noção, do bem e do mal, coisa subjectiva que leva por vezes a equilíbrios no fio da navalha. O aparecimento fugaz de um tigre listrado, meio visto, meio escondido no restolho dos arbustos, hipnotiza quem o vê e olha,