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JUNHO ENQUANTO HOUVER






Entra junho, das cerejas, das festas dos santos e dos pagãos, das celebrações populares. Entra o tempo das desinquietações, a puxar à rua, a espanar o pó das cabeças, na vontade de festejar o descanso das noites prolongadas e encarvoadas que se arrastaram pelos meses invernosos que agora acabam.

Entra a festa casa dentro, portas fora. Antes saltavam-se fogueiras, agora baila-se com rapazes e raparigas de outras latitudes, é tudo igual. Alimentam-se sonhos nos namoricos dos bailaricos de rua, arriscam-se malandrices – que vale o atrevimento - elas estão mais verdejantes, eles mais espigados, ambos entusiasmados.

A natureza inteira renova votos, escolhe um vestido de noiva vistoso, eternamente sem mácula, escolhe o branco. Os noivos, uns a custo, outros animadíssimos com a oportunidade de dizerem sim num altar de talhas douradas com padres com rigor, paramentados. Segue-se um percurso de glória e fama efémeras em carros antigos de colecionador, pelas ruas antigas da cidade, antes do copo de água.

Não um, muitos, todos comemorados no mesmo salão, com banda residente a ajudar as digestões em passos de dança estilosos, antes de se descomporem, os que festejam e alguns da organização e os padrinhos das noivas se começarem a meter com as noivas de outros. Vai dar para o torto!

O povo a assistir, sempre a assistir, lança piropos e flores. Ri e chora e as crianças mais irrequietas de estarem ali, paradas há tanto tempo, levam umas berlaitaidas dos pais, desdentados mas sorridentes, porque sim.

Turistas assistem, compenetrados de não saberem o que se está a passar, não entendem porque são tantas as noivas e tantos eles, os noivos - com os casacos a rigor, descaindo dos ombros: alguns enganaram-se no botão enfiado-o no cós de cima ou no de baixo – todos – audiências incluídas - com a lágrima a puxar emoção, juntados em núpcias no mesmo dia, ao mesmo tempo, na mesma igreja imponente, agora a desfilarem pela cidade velha.

À noite, no aconchego da guest house, perguntarão a quem lhes explique, o fenómeno a que assistiram, se é sempre assim. Se forem bem explicados, ainda vão ficar a gostar mais deste país tão especial, o sítio em que a natureza se casa de amor com os homens todos, e arrebanha-os para bodas conjuntas, no dia de um certo santo casamenteiro.

Mas a festa não é só esta: há desfiles pelas avenidas, com padrinhos mais ou menos famosos, e os desfilantes empenhados em ganhar a competição bairrista. São muitos artifícios e cores em abundância e votações para os melhores, e por vezes cenas saudáveis de pancadaria  e tudo  e tudo.

 Nos bairros já não totalmente genuínos, nas vielas, lugares esconsos, nesgas, becos e impasses, churrasca-se sardinha e febra e gargareja-se cerveja a rodos; apalpa-se o manjerico com cheiro e dizem-se matreiramente quadras mais ou menos brejeiras. Só têm um só mês para fazer as contas às contas de um ano, no negócio porta-a-porta. Algumas sardinhas estão amassadas, acontece. Eles de camisola com alças e tatuagens dos tempos da guerra ainda os há; elas de chanato e roupa justa nos corpos abundantes. Esta gente é uma gente assim, rude mas boazinha.

Este mês, se não é um orgulho e exemplo para os outros meses, é de todos o mais galhardo. Pena que se fine no dia trinta, mas sempre foi assim, nem mais um dia. Só se usufrui uma vez e tanto que se anda carente a aguardar por ele. Insiste, caturrice sua, doze meses a chegar e há anos que esses meses são muitos mais do que dizem os números dos dias de cada um.

Felizmente já cá está. Aproveite-se e folie-se. Aproveite-se o seu convívio até à última das consequências. Com as horas todas marcadas desde que nasce a que se põe, juntinhos, agarradinhos, sem despegar. É uma oportunidade única, para o ano haverá mais, haja esperança e muita fé pagã.


 Até lá são as passas do Algarve, a saber porque se diz isso, que nessa terra de muitos sóis não se passam passas, são boas.





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