Semana 1
Bricabraque, armazém das coisas inúteis, cemitério das
recordações, colecção incoerente, casa das estranhezas, exposição do
esquecimento, salão das curiosidades, ajuntamento de extravagâncias.
Há uma mistura de odores velhos, difícil de identificar.
Perfumes bons e rascas, tabacos de latitudes várias, muitos mofos.
Faz um nevoeiro permanente na sala de grandes paredes altas, com
uma cor indefinida. Absorveram-se os odores com os pigmentos da cor original
que as cobria, não se recorda quando, desde há muito, sempre foi assim,
transformando-a numa cor única, irrepetível.
Presos ao tabuado corrido muito gasto de muito pisado,
agradecido depositário de camadas de cera cuidadosamente puxada a brilhos anos
a fio por mãos experientes, estacionam sofás de veludos fortes, igualmente
esbatidos e que merecem o respeito do tempo.
Almofadas com motivos de tartans
das ilhas de sua majestade, ajudam os corpos a ajeitarem-se e encontrar
posição. Alguns parecem estar ali sentados desde sempre, é do ambiente que se
alimentam.
Cortinas drapeadas de cor damasco controlam a luminosidade que
passa pelas janelas, pintando um ambiente claro-escuro, cheio de sombras,
imagens equivocadas, que se enganam entre si porque não são reflectidas por luz
suficiente.
Homens e mulheres, habituais, fumam, dão golos espaçados em
copos de vidro trabalhado, conversam a tempos pausados.
Uma languidez quase sensual cobre por inteiro este cenário e os
seus actores.
Ninguém admira os objectos expostos, estão impregnados deles
desde tempos imemoriais, sabem-nos de cor, são o acervo artístico das suas
vidas, o que reuniram e agora disfrutam nos intervalos do nada, resumindo-se a
estarem presentes, no gabinete das curiosidades, antecessor snob do museu das massas, de acesso
escolhido e ambiente com reserva do direito de admissão.
Os presentes e os que agora faltam, definitiva ou
temporariamente, falam sobre arte, esta não é democrática.
Um intelectual com auto-estima é um ser insuportável e
enfadonho, arrastam-se alguns neste salão, ponto de encontro, abrigo. Há, no
entanto, indivíduos normais que o frequentam e também pintores excêntricos,
poetas loucos, músicos que habitam nas esferas e só descem à terra para
conviverem mudos neste lugar.
Procuram a terapêutica do belo e encontram esse descanso que
pinga ritmadamente pelas paredes e nos sons quentes que emite a grafonola, instrumento
moderníssimo: uma orquestra completa dentro de casa.
Não se disse ainda que o salão está repleto – todos os espaços
têm um residente – de obras de arte, e uma mistura eclética de objectos
insólitos.
O convívio de almas gémeas arrasta-se noite dentro, faz-se luz
acesa nas trevas, e eles vão ficando, e bebendo, e fumando e conversando
espaçadamente, no seu gabinete das curiosidades.
No dia seguinte voltam, nunca saindo do mesmo sítio.
Semana 2
O corpo e a linguagem que desenham o seu contorno físico e o seu
movimento, são esvoaçantes. Ao mesmo tempo dão a ideia convincente que têm
raízes fundas, emaranhadas no húmus, como se fosse possível haver um ser assim:
acólito do ar e discípulo da terra, dois rivais endiabrados.
Com imaginação diríamos ser uma árvore, o ser mais próximo e que
melhor convive com esses estados da natureza. E tanto podia ser uma árvore que
os seus cabelos fartos e insubmissos crescem fazendo parecer ramos, e o corpo
não sendo forte, é rijo, aguenta ventos e anti-ciclones, mas também tem a
plasticidade da dança.
Tudo nele é essa mistura de dois impossíveis: o delicado e o
agreste.
Mas não é nada disso. É uma divagação do observador a deixar-se
ir nas meadas do pensamento.
É só um homem que pinta. Um homem quotidianamente banal, até que
veste as roupas do artista nas horas em que pinta. Aí é outra coisa, sem nome
ainda não correctamente inventado que corresponda na perfeição do entendimento
dos outros a esse estado intermédio, ou misturado, de um homem quando pinta.
Este homem-árvore-artista é do nosso tempo, uma actualidade. O
espaço que ele neste momento ocupa já foi cosmopolita, num bairro de
divertimentos.
A sua presença aqui neste espaço e neste bairro será efémera,
como é o caminho das coisas todas em direcção ao futuro.
No entanto, quando o observador sentado num banco pouco
confortável, vê os movimentos desse homem e escrutina o espaço e as paredes -
mais ainda sabendo por aviso antecedente que ele iria estar ali por tempo
efémero, num retiro só a si dizendo respeito - tem a sensação forte do passado,
da época em que os amantes da arte e os seus executantes, colecionavam objectos
aleatórios, construindo um bricabraque inusitado nos seus ateliers, ou salões de tertúlia.
Este homem está ali no Bairro Alto, num espaço que um dia
voltará de novo a ser qualquer coisa, e está a resgatar memórias e a criar
memórias futuras, dois trabalhos que pedem um grande sacrifício e honradez.
Forra as paredes sujas com essas memórias, reconstrói um roteiro
interior, a sua história contada na sua pintura através da sua pintura.
É neste ambiente purificado que os amigos e os transeuntes
chegam com intuitos de cavaquearem, pincelarem o olhar no exposto, ou
simplesmente para se silenciarem.
Juntam-se e vão ficando por ali. Entretanto, ele continua
imperturbavelmente a catalogar o seu acervo pessoal, preenchendo as paredes.
Semana 3
Como em tudo, há bons e maus catálogos de escolha de nomes de
ruas, e acumula-se (as que se aceita porque o ritmo das mortes não acompanha o
ritmo de crescimento das vias públicas) uma quantidade inesgotável de
indivíduos famosos e outras toponímias que aguardam a sua oportunidade de virem
a ser escolhidos para darem nome às mesmas. Umas têm inauguração e pompa,
outras de forma mais discreta sem foguetório.
Uma vez benditas as ruas estas vão há vida, e como seres
sencientes, vivem mais ou menos tempo, por decisões que não se alcançam e não
interessa saber.
Todas escrevem uma história com créditos dos moradores, dos
transeuntes atentos ou distraídos, das fachadas dos prédios, dos negócios e
outras coisas que não se enumeram por desconhecimento da sua existência.
Algumas ruas tornam-se importantes, reconhecidas, dadas a vénia.
Outras ficam-se pelo caminho, ganham apelido mas são desinteressantes.
Ruas disto ou daquilo.
A rua de que se fala situa-se no Bairro Alto, “da Atalaia” e
dela nos dá conta em letra sensual, o olissipógrafo Norberto de Araújo nas
"Peregrinações em Lisboa" volume VI página 46:
«A Rua da
Atalaia, onde anda o pitoresco do sítio, no semblante dos edifícios, nos
prédiozinhos côr-de-rosa, de ressalto e empena de bico, nos velhos palácios
adormecidos sem fidalgos, com a sua nota de poesia e côr nos canteiros floridos
das sacadas, com o seu tumulto, os seus pregões, e as suas travessas e
botequins.
Aqui temos
na esquina a Travessa de Água de Flor, lado direito, descendo, um dos mais
antigos estabelecimentos do bairro: «a casa das Iscas», no número 165. Na
esquina da Travessa que vai aos Inglesinhos fica o antigo Palácio Relvas, onde
habitaram os Condes de Atalaia; o primeiro andar é desde há muitos anos sede de
sociedades de recreio. Na esquina fronteira, com face lateral para a Travessa
da Queimada, esteve o jornal [O Diário] fundado por redactores do [Século] em
1903.
Estamos no
cruzamento da Travessa do Poço da Cidade.
Poço da
Cidade - porquê? Porque aqui haveria um poço público. Existia mesmo mais de um,
e em algumas casas desta Travessa existiam ainda poços particulares».
Descrições belas como esta, em maneirismos agradáveis de ler,
saídas dos tempos em que se usavam aparos de tinta azul, românticos, elegantes
no escrever, e palavras com mel que flutuam, flutuando na nossa cabeça, muito
depois de ser lidas ou ditas.
Hoje já não há iscas, nem fidalgotes com pergaminhos, mas
sociedades de recreio sim senhor, continuam firmes no local.
Até há pouco tempo, a Atalaia foi sede de um lupanar das papilas
gustativas – lupanar sim - de gastronomia se fala, uma galáxia de estrelas.
Lisboa ainda estava em desmoda, e o sítio do “Papa Açorda” foi durante anos uma
das mais fiéis peregrinações aristocráticas da cidade.
Mudou-se de endereço, não faz mal, outras delicadezas nascerão
nesta rua que é dada a partos de bem comer.
A Atalaia mantem-se uma rua do Bairro Alto, fanática durante as
noites meio-adormecida no passar do dia, onde um certo armazém de
esquecimentos, assiste a uma colagem nas suas paredes, de pinturas e desenhos
presos por um fio invisível de Ariadne.
Não se assustem que esta crónica não tem monstros, nem grutas
labirínticas. O fio de que se fala, é um fio simbólico que liga o artista com a
sua arte. Dir-se-ia talvez melhor dizendo que é uma teia, que une as obras, uma
narrativa com uma coerência própria.
O que este gabinete está a colecionar- para que outros olhos os
vejam - são relatos da matéria humana, feitos à mão, desenhados, pintados, umas
vezes linhas ténues, outras tempestades e tormentas de cor e texturas. Presos à
terra, no entanto a tentarem uma escapadela para o ar.
Cada parede desta loja apresenta um ciclo, mas não é bem assim:
nesta arena joga-se um jogo do sim e do não, da cara e da coroa. Tudo tem o seu
verso e reverso. Representa-se a lógica do caos, afinal a lei mais universal de
todas as universais.
O artista vai laboriosamente colando e ligando, para pleno
desfrute do seu grupo, cada vez mais numeroso à medida que passam na rua, olham
as montras, espreitam para dentro, e nesta curiosidade humana entram para
admirar.
Constrói-se um proto-museu, na rua da atenção.
Semana 4
Num relance, distanciado, transmite a sensação de uma figuração
abstracta, se isso existe com esse nome.
Todos os rótulos são redundantes apesar de alguns darem bons
nomes.
Não se olha uma só vez. Repete-se para confirmar a impressão,
forte. Fica-se a pensar nisso insistindo olhar.
É uma pintura de dimensões, pede espaço para se mostrar. Não é
só uma pintura, é um ambiente.
O que no primeiro relance oferece uma amálgama de cores e
texturas - uma representação do caos - logo se enriquece de contornos com a
atenção. Vivem personagens dentro dela. já os podemos vemos agora, focando
ganha-se nitidez, percebe-se. Uns penetram-se de outros; uns têm vários rostos
dependendo da posição; uns são seres imaginários, meio-homem meio-bicho: coisas
com vida.
Há também objectos espalhados aleatoriamente ou se calhar nos
sítios certos. Objectos símbolos. Desenrolam-se à frente do observador cenas
ritualistas, episódios de mitos humanos, ou somente a apresentação crua com
movimentos plásticos querendo invadir o espaço exterior das telas, a tomar
posse do real, de corpos de homens e mulheres, em esgares de qualquer coisa que
não se entende muito bem. Talvez cumprindo esses rituais, num universo
pessoalíssimo e fechado.
O corpo, a condição que o enforma: uma pessoa.
Estão igualmente representadas as geografias do mundo, e por
isso também podia ser um livro de esboços de viagem, em tamanho de grande
escala. Sempre aberto, as folhas do moleskin
estão expostas nas paredes de uma casa-museu de objectos do efémero.
Aqui e ali, salpicando esquinas e rebordos da habitação, caras
em molduras. Nenhuma olha directamente para nós.
Lançando o contraditório e aguçando a curiosidade, uma lupa na
ponta de um braço telescópico, sustida à terra num tripé da altura de um homem
adulto, convida o espectador. Esse objecto encontra-se ali por brincadeira, ou
tem algo para revelar?
É irresistível.
Aproximando um olho muito aberto e o outro fechado, como ditam
as regras de se ver à lupa, descobre-se um novo mundo, entra-se no cosmos da
pequena escala, onde se desfia toda uma outra história, de pormenor.
" Nada do que parece é, neste gabinete de curiosidades numa
rua sentinela do Bairro Alto"
Semana 5
O gabinete das curiosidades podia ser uma biblioteca dos livros
improváveis.
A arte tem uma grande simpatia pela palavra improvável, uma
“ocupa” espaços em branco. Quando se nomeia, aparece de imediato, acenando
obscenidades nas costas dos protagonistas. É por isso desdentada e
inconveniente para alguns. No entanto faz-se anunciar resguardada por uma
mantilha sevilhana, adensando mistérios, o que põe as pessoas com a pulga atrás
da orelha.
O epifenómeno que está a acontecer nesta esquina da rua da
Atalaia que de momento nos interessa, não é então uma biblioteca, é a
antecâmara de um museu pessoal.
A colecção do artista: do que fez e do que juntou como objectos
do agrado, ou portadores de um algo com significado pessoal, ou somente
lembrança, num momento específico na história dos dois. As pessoas têm todos os
gostos: umas juntam tralhas, outras recordações, outras criam utopias, outras
lavam a memória com creolina para recomeçarem tudo de novo. Estes acervos são
as suas colecções privadas, espelhos dos rostos dos seus depositários.
Os livros e as pinturas têm – entre outras afinidades- duas
coisas em comum: São manifestações únicas e originais, vindas de um âmago
humano. De um ponto, tão dentro, que não se identifica, nem se sabe onde nasce.
Não há nenhum outro ser com esse talento: de construir um objecto – mesmo imaterial,
como a música – a partir de uma abstração que ganhou forma e sentido num
pensamento.
Os homens podiam viver sem a arte, ela não afecta o andamento do
mundo. Mas tornavam-se surrealmente irrelevantes. Parecidos com outros
mamíferos - as aves por exemplo, bonitos sem dúvida - mas sem instrumentarem a
subtileza do ser, no talento inexplicável de criarem o Belo a partir do nada.
Sim, a arte mesmo criando o feio, é um imperativo do Belo.
Nesta espécie de arquivo de memórias a céu aberto, não há
portanto livros. É o reino da imagem, que vale tantas palavras quantas estas se
valem a si próprias em dias difíceis, desconsideradas do seu valor.
Neste muito particular gabinete de curiosidades (tudo isto pode
ser um sonho) paira no ar uma revolta, contra a tirania. À socapa do dono, as
pinturas conferenciaram com as palavras, convidaram as fotografias e tomaram a
decisão por unanimidade da sua própria autonomia, vão a partir de agora, seguir
caminhos seus.
O guardião e criador ainda não foi notificado, vamos ver no que
isto vai dar. Uma coisa é segura, antecipam-se despiques acessos e picardias.
Cenas de ciúme, egos feridos, vitimizações, cobrança de créditos.
Pais e filhos só mais tarde se entendem nas questões das dívidas
de gratidão. É o caso destes.
Cada um com os seus argumentos, querendo mostrar mais que o
outro, e melhor.
Faça-se o refinamento da Palavra: isto não é uma revolta, é uma
sublevação, a vontade legítima de independência que toda a arte anseia após ser
criada: dar os seus passos sem tropeçar no andar do criador, cada um aos seus
afazeres.
Este artista em particular, é agarrado às coisas suas pelas
quais nutre um amor são, mas é homem de aceitação fácil. Acabará a reconhecer o
desejo das suas obras. Não é por isso de estranhar que um dia não marcado,
chegue ao atelier-gabinete, e o encontre vazio. Os objectos desanuviaram-se,
todos contentes rumo ao futuro.
Ele encaixa bem e não é de fazer comentário, muito menos amargo.
Seguirá adiante, na sua vida. Voltar a pegar num pincel, e começar mais um início,
pintando uma tela com uma ideia que acabou de relampejar na cabeça.
Até lá, visite-se o Gabinete, troquem-se impressões com os
residentes, desfrute-se da música, e se por uma casualidade daquelas mesmo
casuais, se tropeçar com um livro, não se estranhe: alguns, mais cosmopolitas
gostam de um boa peça de arte, pelo que deambulam por estes meios, a absorver
ambientes, como se fossem gente séria.
Semana
penúltima do fim. Rua da Atalaia 31
Não há melhor forma para terminar do que abolir as portas. Assim
mesmo, dessa forma teatral e exuberante.
Na curiosidade já impossível de aguentar, dos transeuntes e os
do bairro que por ali passam e se detêm a admirar as montras ou a espreitar
descaradamente, imaginando coisas, congeminando sabe-se lá que falsidades,
chega o momento que não se aguenta mais: ou o gabinete fica para todo o sempre
um espaço esotérico, fechado, grupal, ou abre braços aos desconhecidos.
Todos os dias a passarem, são merecedores de usufruírem de um
convívio próximo com a exposição desordenada numa ordem que só o dono sabe,
conhecerem e confraternizarem com a estranha e excêntrica fauna humana que ali
co-habita, na parte cinzenta do dia que é o seu ocaso, em tertúlias
estimulantes, por vezes intelectuais, outras completamente banais, balanceadas
com conversa, música e os efeitos deletérios de um copo.
Resume-se tudo a dois ou mais dedos de conversa entre amigos,
rodeados de um ambiente familiar.
No gabinete vivem em boa harmonia e sem conflitos sociais, uma
motorizada que está embaraçada – como os espanhóis dizem da gravidez -, cabeças
de madeira que são moldes de chapéus, pés de madeira que são moldes de sapatos,
coisas aberrantes e meio malucas.
No meio de isto tudo, o pintor - ser teatral - espalha pelo
ambiente a meia-luz, os seus odores de demiurgo de inutilidades: uma designação
honesta para se falar da arte.
Para ilustrar, um escriva escreve as crónicas deste reino irreal
que existe para os lados do Bairro Alto. E para que não se diga que tudo é
mentira, uma fotógrafa de mão cheíssima de talentos, fabrica a reportagem do
que se vê na Atalaia, criando outra obra de arte, e cortando fôlegos no que
capta.
Anda tudo assim: à volta do mesmo, que é dizer: preencher com
inutilidades belas os vazios quee deixam no caminhar as marcas dos nossos
sapatos.
Esperem um pouco, só mesmo um pouco mais, que estão quase a
serem actores desta historia.
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