Lá fora é Setembro, a luz já não é a mesma.
No Verão partículas
de calor turvam o ar, saturam o ambiente. A luz em toda a sua plenitude
encadeia. Anula o distanciamento, o perto e o longe. Os horizontes tremeluzem
mais, longínquos como sempre, e ganha a persuasão do imediato que está à mão. É
o tempo do agora.
A luz do Verão incide difusamente sobre os objectos, coloca-os à
distância de um braço estendido que tateia os seus contornos esguios, por
essas razões é uma época sensual dada à aproximação dos corpos.
Com a mudança do mês, na despedida da estação os cenários
ganham lucidez, desaparecem as poeiras, puxam-se brilhos, redefine-se o aspecto
das coisas, ou sendo mais simples, volta-se a habitar o quotidiano, anuncia-se
a entrada no tempo sério.
Lá fora é Setembro e as crianças ainda jogam futebol na rua e
gritam gastando energias impensáveis. Andam nisto há meses e não se cansam,
felizmente. Quando começar a chuva e o vento, deixam de jogar na rua e não
podem gritar em casa. Aborrecem-se.
No Verão a cristandade inteira pedia para se continuar em modo
parado, sem se exigirem trabalhos a ninguém, tudo a sonhar que era assim a
eternidade, uma suspensão do movimento inútil, a fruição do nada totalmente
imóvel. Os outros, muitos, que não são cristãos, também estavam de acordo com
esta ideia.
Em Setembro muda tudo, começando pela novidade que o Outono não
tarda aí, e alguma frescura, dias mais curtos, olhares e meneios de corpos
marcados por um romantismo específico talhados para esta época do ano.
Lá fora, as crianças continuam a gritar e a jogar, e assim será
até perderem a inocência e deixarem de sair à rua por razões lúdicas, quando
forem empossadas oficialmente a só terem razões laborais. Elas ainda não têm
preferências pelos meses, porque estão na fase de serem eternas e não estão
minimamente interessadas em saber que os meses têm nomes e são diferentes e
efémeros, e alguns deles bastante chatos.
Lá chegará o dia em que elas realizam que não existe a
imortalidade. Umas ficarão melancólicas, outras exacerbadas, com polo negativo
ou positivo. Será nesse momento que se estabelece a doença da renúncia que
acabará por as consumir.
A
melancolia é uma tristeza que se aguenta, o exacerbamento é um exagero perigoso, dizem os
psiquiatras que algumas vezes têm razão, quando não estão exacerbados de si nos
outros.
O Verão será sempre caloroso e açafrão, o Outono é – diplomata
entre o calor e o frio - como lhe toca e gosta, romântico. Usa-se de cores só
autorizadas a vestir sem moderação na sua época, convencendo inclusive as
árvores e os arbustos a abandonarem temporariamente a cor verde, arriscando
acobreados, extravagâncias a que a natureza fecha os olhos nesta altura do ano,
confundindo-se a si mesma pela alteração da ordem das coisas, neste caso as
cores que forram os espaços dos jardins.
A menos que as estações do ano mudem em pirotecnias climáticas e
contra a vontade dos deuses e dos ateus que são conservadores e não gostam de
novidades que os tirem do sério, os meses do ano são fiéis aos seus princípios
de serem como são, correspondendo honestamente ao que se espera deles: nada de
particularmente especial a não ser as suas diferenças.
São os homens quem tem uma acentuada tendência para se
extraviarem, enviesarem, entornarem, e coisas assim, e são eles a maioria das
vezes, que quebram os tratados de fidelidade, indo pelas costas e atraiçoando
as expectativas dos meses, que apesar de viverem há uma eternidade continuam e
continuarão a ser absolutamente ingénuos.
As crianças chilreiam e esvoaçam. Não, são os pássaros. As
crianças apalavram gritarias e dão saltos esvoaçantes. Está bem assim.
Lá fora faz um Setembro de se lhe pôr a vista em cima.
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