O clima é extremado, não gosta de meias tintas: rigorosamente
frio, ou intransigentemente quente. As poucas pessoas e bestas que habitam as
paisagens – bucólicas as últimas na perspectiva do transeunte em passagem – são
igualmente assim. De tanto convívio com a natureza, sorveram do ambiente o seu
feitio complexo, ensimesmado.
Não deixam a porta aberta para que qualquer um entre, mas fica
encostada quando saem de casa. Não são seres que amem as solidões, mas o confinamento
e a escassez de almas, encerra-os, convite quase forçado a sentarem-se no
escano em frente ao fogo. Sorriem de portas adentro, em família, gente séria
nos rostos que se apresentam à luz do dia.
Em passados antigos repetindo-se nos recentíssimos, foram poucos
os que não se refugiaram no estrangeiro ou nas grandes cidades do litoral. Fica
quem não se despega da terra: impossibilidades pessoais ou físicas.
Fica quem tem os magnetismos alterados, os que apresentam raízes
nos pés, que se metem a crescer pelas profundezas da terra.
São esses os que não saem, nem para dar descanso às suas
dificuldades.
É assim, nestes lugares como em todos os outros, em que vai passando
o tempo, distraído, atarefado nos avanços para o futuro, sem fazer pausas no
presente.
Antes, era quase um dia para chegar a Trás-os-Montes, pedia-se
uma mentalização prévia para a viagem, curvas e mais curvas, enjoos, estradas
más, retratos bonitos a passarem em flecha à frente dos olhos, como se as
janelas do carro fossem ecrãs de cinema. O automobilista, sem espaço de memória
para os arquivar todos.
A fazer de fundo para estes cenários, uma paleta de verdes e
castanhos acobreados, se é Outono, a estação que rivaliza de cores com a
Primavera; e um catálogo de cinzentos, se é Inverno, a estação que rivaliza de
tristeza com o fim.
Agora é tudo rápido, o país intersectou-se de linhas rectas traçadas
a alcatrão. Saídos de casa, estamos daqui a nada à porta de qualquer sítio que
se aponte no mapa. O que se poupa na velocidade com que se chega, subtrai-se no
prazer da viagem, insonsa do seu melhor condimento, a aventura –
apercebermo-nos das alterações da paisagem, as cambiantes subtis ou não da luz
que se projecta nos sítios, as meteorologias -, presos no cinto de segurança e
na previsibilidade enfadonha de chegar a um destino sem memória de
acontecimentos interessantes assinaláveis no lapso de tempo decorrido entre a
partida e a chegada.
É assim que as coisas agora são.
Adiante, que vamos para Carrazedo de Montenegro, a capital da
castanha. Tem que se ser a capital de qualquer coisa, aparecer no “ranking”,
para não se transfigurar em fantasma, um risco elevado nas geografias
interiores quase despidas de vida palpitante.
Carrazedo de Montenegro poisa-se nas alturas do Concelho de
Valpaços – oitocentos metros – e olha para este de alto para baixo. Foi sede de
Concelho até 1853 e ficou o ciúme - qual o mais bonito, e o mais importante -
que da pouca população, Valpaços leva-os à perna, em contas de dois milhar e
picos de superavit populacional.
É uma vila aberta aos brilhos pristinos do céu, mais próxima das
alturas, o que conta e muito para a purificação dos ares e das almas, que é
tudo boa gente.
Por vezes as entidades que presidem as coisas da terra, que
neste caso – tirando a poesia - também se podem chamar fenómenos climáticos,
para entediar os terrenos que vivem no vale, na chamada “Terra Quente”, carrega-os
de muitos nevoeiros. Não é por mal, são brincadeiras dos seres superiores fora
do entendimento humano.
Quando este fenómeno acontece, os de cima, de Carrazedo, olham
para o céu e agradecem a pequena maldade: os de Valpaços, vão passar a manhã a
tentar descobrir a ponta do nariz, tal é a densidade da névoa que se instalou.
À tarde as coisas mudam, levantam-se os panos, a luz inunda o
vale e todos esquecem rivalidades, cada um à sua vida.
Especula-se sobre a etimologia do nome. Há quem diga que
“Carrazedo” vem de carrasco, abundância de carrascos (uma espécie de carvalho, aqui
há muitos). “Montenegro” vem da escuridão da vegetação da serra da Padrela, o negro
monte que lhe faz sombra.
Nos dias de hoje, Carrazedo é uma vila limpa e pintada de cores
frescas, claras, todo o contrário do que se anunciava no parágrafo anterior. Tem
uma igreja Matriz quase majestosa, uma pequena catedral, que do interior dizem
os vizinhos não ser a mais rica - picardias locais. Foi construída no Séc. XVI
e remodelada no Séc. XVIII, Neo-Clássica com acréscimos do Barroco.
Venera-se S. Nicolau de Mira, o Taumaturgo. Santo padroeiro da
Rússia, da Grécia, da Noruega, e de Carrazedo de Montenegro. Este homem do Séc.
III, milagreiro, ganhou fama pela caridade com as crianças e tornou-se um
símbolo ligado directamente ao nascimento de Jesus (e à época natalícia: Pai
Natal, Santa Claus, é este senhor).
Espreguiça-se a vila por um jardim contemporâneo, já não se usam
árvores nestes espaços, só relvas e patamares de pedraria e canteiros rasos com
arbustos. À noite, deserta de seres de
qualquer espécie – descontando os cães vagabundos que cumprem penas de outras
vidas - luzes modernamente estudadas nos candeeiros de pé alto, criam o ambiente
que ninguém vê.
A feira da castanha na capital da nomeada, é uma festa. No
pavilhão das actividades económicas apresentam-se os stands sérios: as
instituições, os produtores, os comeres. Á porta do pavilhão estacionam as
“forças vivas” da região, no ponto estratégico onde se vê quem vem, quem falta,
se cumprimenta e se ganham fichas de simpatia, se passam recadinhos com ditos
mais ou menos sinceros.
Cá fora, no jardim, os feirantes profissionais de tenda montada,
oferecem o que é de costume: as trusses, as meias, os fatos de treino, as
camisolas com estampados de tigresas e outros felinos.
Farturas é com fartura, não se resiste ao trocadilho, tanta
oferta num espaço tão curto de gente.
A Castmonte (assim se chama esta feira) celebra o tesouro da
região, e é a oportunidade (voltamos ao princípio da conversa) da terra aparecer
no mapa das terras que ainda não feneceram.
A televisão do Estado marcou presença, programa de Domingo, com
as pimbalhices habituais e as ofertas
de dinheiro e carros, pagos e bem pagos nas chamadas ingénuas e às carradas,
dos espectadores ávidos de virem a ser os felizes proprietários de uma viatura
para a qual não têm dinheiro para a gasolina, a manutenção, o Imposto de circulação
e o seguro.
Não há dúvida que Carrazedo de Montenegro é a capital da
castanha, que a melhor é a “judia”, mas se o cliente quiser e for conhecedor
também pode levar a longal, a lada, ou mesmo a cota, nomes que se aprendem e
são bons nomes.
O Concelho não tem ainda uma oferta turística diversificada.
Umas poucas unidades de turismo rural e residenciais paradas num tempo próprio:
desde o dia em que abriram portas.
Aos poderes autárquicos, em esforço de criatividade, cabe-lhes
divulgar e trazer turistas, a tal diplomacia económica. É um trabalho que pede
ideias fortes, bem ilustradas, que atraiam e cativem as pessoas. Bons
argumentos que façam os turistas escolherem esta terra em vez de outra, para
disfrutarem o fim-de-semana.
Nós, chegados a gente de cá voltamos amiúde, e pelas noites,
sentados no mesmo escano do início desta crónica, crepitamos as castanhas na
lareira, alouramos as pinheiras (cogumelos selvagens) com sal e uma pitada de azeite,
cozinhadas na brasa. O vinho, é denso, escuro, saboroso e telúrico.
Houvessem hospitais e boas escolas e era na terra da castanha que
ficávamos, a ganhar cores e enrijar as energias, que na grande cidade só se
ganham arrelias e catarros.
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