A minha tia tinha um olho de vidro e à noite
afogava-o, maneira de dizer,num copo de água em cima do psiché.
A água não era gaseificada, mas constituíam-se
pequeníssimas e inúmeras bolhas à sua volta. A modos que um olho numa flute de champanhe.
Para quem está habituado a dentaduras a boiar,
esta foi uma grande ideia da minha tia.
Sendo uma mulher com o sentido prático da
vida, e como não se está a ver ninguém dormir com um fechado e outro aberto, não tendo outros inquilinos,
arrendou o aquário ao vítreo.
Foi o meu avô que lhe ofereceu o olho, mais
para ganhar as graças da sogra e ficar oficializado o namoro com a minha avó,
sua irmã, do que por atenções à zarolha. Foi no entanto um gesto de simpatia.
Um dia já sem memória que a bicheza das campas as comeram ao mesmo tempo que as
carnes, chegou a casa delas com um embrulho de papel pardo na mão e disse
alheadamente: «toma, a vê se
encaixa».
A minha tia desembrulhou-o na expectativa das
testemunhas oculares - a
mãe Carolina e as filhas - puxou
brilho com uma naturalidade que parecia não fazer outra coisa que puxar o lustro à vista, acompanhou-o
até à nova habitação, vazada por um gato de maus humores e relaxou-se a olhar
fixamente para a audiência, boquiaberta e parva pelo novo cenário da rapariga.
Na realidade não ficou a ver melhor, mas
parecia mais atenta.
O meu avó ganhou créditos, os homens que em momentos de
necessidade substituem peças em falta aos familiares mais chegados, estão
sempre bem vistos.
Quando se dá de caras com o mundo, os corpos vêm sempre necessitados de pequenas
revisões. Deus cria tantos, que calham imperfeições aleatórias.
O Mário não substitui o Altíssimo, mas cumpria
os deveres de bom cristão, como mecânico em terra.
São estes pequenos e quase irrelevantes gestos
que transformam as nossas histórias futuras.
Não lhe tivesse baixado a ideia
- estratagema sedutor - e a minha tia não teria tido as vistas todas –
apesar de uma ser a fingir - ele
não teria casado com a irmã, e por sua vez, que isto é um encadeamento
estonteante, eu não estaria agora a recordar um olho de vidro que o meu avô
comprou um dia numa loja no Martim Moniz.
Grande imitação de olho que era!
Se minha
tia foi sempre uma mulher amarga num coração enorme às avessas com o mundo,
amaciou-se de vez e com dois olhos, mesmo com um inactivo, pediu-se de partilha
de leito e outras agruras ao Jacques, que nisto de decisões grandes ou
ligeiras, não se aconselhou com terceiros.
O afrancesado que não fazia a mínima ideia que
o era – aparte a estranheza do apelido - descendente
da eventualidade de um espermatozóide perdido desde as invasões francesas,
entregava botijas de gás e apesar da sua profissão, não resistiu aos encantos da Florinda.
Quando uma mulher se põe bonita fica o mundo
em alvoroço.
Quando eu era criança e a visitava numa vila
operária de Lisboa fazia figas para que o olho ainda estivesse em repouso. Ela
abria-me a porta, beijava-a furtivamente e esgotava os passos curtos numa casa
que acabava ao começar, rumo ao quarto para deliciar-me rodando o copo, tentando
entender o que é que o olho da minha tia Florinda estava ali a fazer, descansando
dela.
E como a imaginação das crianças é ainda mais
prodigiosa que a Criação, que esta trabalha com matérias e a delas trabalha com
as energias da imaginação, via-me a descobrir -
no olho de vidro -um roteiro de pequenos vasos sanguíneos, desenhando curvas e
contracurvas que me lembravam estradas.
Jurei-me a pés juntos, que a íris se contraía
no confronto do meu olhar, ficando perplexo com a ideia do olho da minha tia
estar a olhar para mim dentro de um copo de vidro, enquanto ela amanhava
carapaus para o almoço na cozinha.
Lembro-me bem desse olho, ainda deve estar
vivo.
Se alguém o encontrar por acaso, numa visita a
um ente querido e fenecido, em repouso no cemitério do Alto de S.João, não se
assuste que é o olho da minha tia Florinda.
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