Tenho a noção do momento em que deixei de ser imortal, e disfarcei como se não fosse comigo. Olhei para o lado e não dei importância a esse contratempo: orgulho é inconsciência. Tratei do assunto com se fosse uma indisposição temporária, e segui a minha vida, mas as ressacas nunca mais foram as mesmas.
Desde aí tenho vindo a aguentar os insucessos físicos, alguns inconseguimentos que não nos deixam confortáveis, falhas de memória também, e faço como se não fosse comigo. Assobio para o lado, persistente na teimosia do inevitável, ou se calhar agindo como um idiota chapado.
Inevitável é uma palavra definitiva, sem contraditório. Irritam-me palavras assim! Faz algum sentido existirem palavras que não permitem uma conversa civilizada? A apresentação dos argumentos, a possibilidade de um acordo, no meio caminho do que ambas as partes queriam no início das negociações? Vais começar e já está colocado – no ponto de partida – o ponto do final?
O meu corpo deixou de ser belo se é que alguma vez foi – mas foi jovem, narcísico de energia transbordante - a minha cabeça não piorou nem melhorou, está ao nível da minha cabeça, mas não quero saber, esqueço-me propositada e constantemente da minha cabeça.
Muitas vezes não senti a sua falta, outras bem falta fez.
Engano-me, fingindo que estou a olhar para a frente, mas é mentira: estou a olhar para trás. São raros – e infelizmente não sou desses - os que só olham em frente. Nunca fui afoito nisso, adio sempre essa decisão fundamental de só olhar para a frente.
Quando estou banhado pela luz do dia ainda vai que não vai, vou vendo o contorno da minha sombra, ando acompanhado e tenho com quem asneirar na conversa. Quando baixa a noite – a menos que em lua cheia - as costas não têm luz para se projectarem no chão, o fantasma desaparece, fica o espaço vazio e o som dos nossos passos a fazerem eco dentro da cabeça. Com um martelar destes não se consegue falar com ninguém.
É portanto no período da noite que me sinto menos de longo prazo.
Nestas trabalheiras todas: da cabeça e do corpo, e uma e outra e as misturas das duas, ofendo-me a mim próprio – mesmo – por não ser imortal.
Como acredito em fadas, nos gnomos e nos deuses, e com toda esta credulidade, há dias no inverno em que desperto com a convicção que posso atingir a imortalidade - há sempre casos que fogem à norma. Na nossa espécie, deve haver alguém que engane o tempo!
A inexistência da possibilidade de ser o seu senhor afecta-me. Não fosse existirem bons comprimidos e não sei se resolveria os nervos.
Se pensar melhor, esta ideia aparvalhada nem faz muito sentido. Há segundos que são eternos, outros vão-se sem dar conta. As penas da vida pesam chumbo, as felicidades são picos efémeros, andamos num corropio constante, porque havemos de quer ser imortais?
Para quê, se quando partirem os que amo, deixo de dar parabéns, assim como deixarei de os receber?
Em todo o caso gosto de cumprir os anos, guardo-os transformados em memórias, e no dia do meu aniversário, ponho o contador a zeros, com o nervoso miudinho para folhear as páginas que se seguem, na expectativa infantil de novas e apimentadas aventuras com os amigos e outros que se vão juntar no passeio da vida.
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