Tenho um lugar de estacionamento reservado, todos os dias da
semana até às 8h30. Se me atraso, as coisas complicam-se e dou-lhe mais vinte
cêntimos para conseguir outro decente, de acordo com os meus princípios.
Depois das manobras, seguindo as suas
indicações e sinaléticas - como se eu tivesse uma limousina de cinco metros difícil de manobrar, quando a minha
viatura, se estender o braço acaricio o vidro traseiro - fecho o veículo com um
comando à distância, que me intriga por ainda funcionar, e dou-lhe a propina
diária.
- Bom dia chefe. Bom trabalho.
- Bom dia chefe, obrigado.
Foi a conversa mais profunda que tivemos nos últimos trezentos
dias – descontando os descansos.
Hoje é domingo, e estou numa galáxia distante da que habito nos
outros dias da semana.
Estou parado num sinal vermelho num bairro às portas da cidade. Não olhei mas sei por instinto que tenho um eléctrico amarelo ao meu lado.
Estou parado num sinal vermelho num bairro às portas da cidade. Não olhei mas sei por instinto que tenho um eléctrico amarelo ao meu lado.
Distraío-me com a radio enquanto espero que os meus pais desçam
as escadas para irmos almoçar. Cumpro neste local e neste momento a desculpa
esfarrapada do filho consciencioso e grato que não abandona os pais velhos na
solidão.
Reponho os meus níveis de consciência tranquila com um almoço
semanal de duas horas em que os resgato temporariamente do abandono. Depois
disso sobrevivo às recorrências do sentimento de culpa, até ao domingo seguinte,
e eles convencem-se a si mesmos que a semana se reduz aquelas duas horas, e que
todo o restante tempo que a preenche não é mais do que um buraco negro vazio de
tempo.
Enganamo-nos mutuamente numa espécie de acordo silencioso em que
nenhuma das partes denuncia a outra.
Mas eles amam-me muito mais, porque se convencem da
ausência de tempo, pelo amor que me têm, e eu, nem das recorrências me livro!
Enquanto espero, não penso em nada de especial, senão no desejo
vago de que as próximas duas horas sejam rápidas. Tenho coisas mais
fundamentais para fazer no domingo, como por exemplo,preparar-me para os dias que tenho
pela frente na galáxia real em que resido.
Do meu lado esquerdo começo a ouvir um matraquear abafado e
persistente. Uma mão a bater insistente numa superfície sólida.
Viro-me por instinto, e vejo um individuo a gesticular para mim
com um sorriso sem dentes à vista.
Este homem está absolutamente alegre por me ver, creio.
As suas feições não são estranhas mas não identifico
imediatamente quem seja. Reconheço o chapéu, reconheço o colete cor khaki: já sei! É o romani que gere por
conta própria o descampado de terra batida, ao lado do teatro da “Comuna” onde
estaciono o carro.
O que me dá as indicações precisas, como um funcionário “follow me” a estacionar um Airbus na placa do aeroporto.
O que me dá as indicações precisas, como um funcionário “follow me” a estacionar um Airbus na placa do aeroporto.
Está mesmo feliz de me ver num sítio improvável para ambos, e
eu, sem maiores explicações, também fico muito feliz.
Rimo-nos pateticamente e não paramos de nos dizer adeus e de pôr
as mãos fechadas com os polegares para cima. Gestualmente relembramo-nos um
encontro marcado, amanhã, no lugar do costume.
O eléctrico arranca eu ainda não, ele vai à sua vida. Eu
continuo à espera de cumprir a minha, de preferência sem remorsos de monta.
Aí vêm eles, vamos almoçar.
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