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Está um frio desgraçado.

Está um frio desgraçado, está mesmo um frio filho de puta, que assobia pelas pernas acima  põe os pelos das pernas em estado de alerta e não me deixa exercer a  profissão adequadamente.

Esta estrada, que é recta, graças a Deus, por ser grande, dá-nos tempo de mostrar o produto mal um camião  desponta ao longe. 

Chama-se coina. O gajo que lhe deu o nome não devia estar bom da cabeça, acrescentou-lhe letras, ou então é assim mesmo em honra a esta profissão miserável. 

Estou mesmo a ver no dia em que o presidente da Junta, inaugurou esta recta que não tem fim, e destapou o marco com o nome dela. 

Ando nesta vida há dez anos que parecem cinquenta. – coisas de  família . Parecem mas é uma data de vidas umas em cima das outras, como aquelas sandes que os gajos no Porto chamam  francesinhas! Vidas em camadas, cheias de molho, que só entopem o coração.

Passo o tempo sentada de perna aberta virada para a estrada, na mesma puta de pedra, que me faz as vezes de um sofá duro como corno. De tanto me sentar nela,  quase já lhe peguei carinho.

Conheço de cor as árvores, os arbustos, toda a erva miúda nesta merda deste sítio.

Identifico quase todos, são sempre os mesmos a passar por aqui, os veículos, digo.  Às vezes até me sinto uma  agenta da autoridade, graduada  da GNR, que sempre adorei fardas e aqueles riscos dourados colados nos ombros, quantos mais riscos melhor. Até ofuscam, e chamam ao respeito.

Digo que me sinto agenta,  porque os controlo a todos, só não lhes faço testes do balão, porque neste caso, quem sopra sou eu.  

Se é calor,  estrelo numa frigideira, se frio, sinto-me  “pinguina”, que  é o nome  das gajas dos pinguins, aqueles animais que nem sei se são pássaros ou a pata que os pôs, com ar de idiotas , que andam como se estivessem a fazer uma sessão de equilibrismo numa corda pendurada no ar . Sim, que eu vi num desses filmes de bonecos, das raras vezes que fui ao cinema e era assim que eles andavam, em fila, a cheirar o traseiro do da frente, e todos a balouçarem para o mesmo lado. Não percebi nada daquela porcaria: animais a falar como eu. 

 Os cães que por aqui passam ,vindos ao cheiro, nunca me dirigiram nenhuma palavra, e não creio que tenham entendido as minhas. As pedradas de certeza que percebem, sacanas, que não me deixam em paz.

Como é que os cães não nos largam? Nunca vi nenhum outro animal assim! Porque é que eles querem ser assim tanto como nós? Chateia.

Ainda estou cá a pensar como é que os pinguins falam como eu!
Ele há cada coisa na madrasta da vida!

Não há um cabrão de um camionista que pare, mais não seja para  cinco dedos de conversa e uma cigarrada. E se me der uns trocos sem ter que lhe tocar, tanto melhor, que até me metem nojo.

Agora  passo, passam-se, dias inteiros sem ter um único cliente, os negócios estão todos maus, mas o da prestação de serviços vai de mal a pior, e ainda por cima não há ninguém que nos ajude. Usam e abusam e é como se não existíssemos. Nem os doutores engravatados – que também por cá passam, não é só camionistas – se lembram de nós, depois de irem mais leves para casa, aturarem as chatas das gajas que lhes lavam as cuecas.

Devo cinco meses de renda do quarto, e  só não me puseram na rua, porque  vou pagando com o corpo, que ainda estou para as curvas, e foram boas as professoras que me ensinaram algumas especialidades. Também fui uma aluna atenta , tenho diploma de boas notas.

No início, não tinha mãos a medir. Nem mãos nem a dita da coisa. Era “atar e pôr ao fumeiro”, como se diz na minha terra, no Norte. 

Diga-se, bem dito, que sou uma rapariga  jeitosa. Um pouco para o cheio, mas eles gostam mais assim. Carne com fartura para se atafulharem como labregos que são. Quando o meu cu era mais jovem, e o resto do corpo que o acompanha, mal o assentava na pedra, parava um novo freguês. Não dava para esfriar. Arrimar-me à janela, a conversa da treta do código das putas, apresentação do menu, negociação de preços e descontos e acrescentos, e pronto, mais uma voltinha.

De alguns clientes  soube-lhes nome e reconheci cheiro. Sim cheiro, para não cuspir outra calinada. 

A mim chamavam-me a poderosa, ainda  sou.

Nunca poupei nas doses, sempre servi prato cheio, que os homens que passam aqui são de alimento.

Também nunca poupei a pensar na velhice. Nesta profissão não se chega à velhice, já somos velhos antes do reumático: não sei, se calhar sempre fui velha e não dei conta. Nasci prontinha a esticar o pernil, resolver isto de depressa, isto da vida, que a minha não tem sido das boas e é melhor a gente despachar a questão.

 O dinheiro  ou era para o chulo, ou para gastar na bebida, que ajuda a esquecer esta vida miserável. Para mim é bagaço. É como uma esponja para absorver as memórias.

 Ficamos como os peixes no aquário , a abrir e fechar a boca encostados ao vidro, nem nos damos conta que somos infelizes. Sem ser médica, é a melhor anestesia geral que conheço para as doenças da cachimónia.

O gajo pirou-se, claro. Encostou-se a uma lambisgoia toda boazona que apareceu por aí há meia dúzia de meses, e como ainda está tenra  e é dada a toda a porcaria e mais alguma, vai de a secar, como fez comigo, o cabrão. Pode ser boazona, mas veste-se mal de cara!

Há dias que só me sai merda pela boca fora, quase nem consigo dizer palavras a sério. 

É dos nervos. Ando muito nervosa , a Jaquina , a gorda que está ali mais à frente, diz que há um chá que faz bem aos nervos. Cirdeira, será? Mama mas é uma litrada e aí é que vais ver o que é acalmar! Mulas que têm a mania que sabem tudo! Palpites e mais palpites, mas também anda aqui a deitar-se debaixo dos pinheiros como as outras.

Hoje, cheguei às nove, já se fez mais tarde que o fim da tarde, e só me apareceu um tonho a pedir uma massagem por 5 euros. Levou uma dose que lhe arrancou a pele, que é para não ser parvo.

Mas olha, já paga a sopa e um penalty.

Já estou cansada de os ver passar .  Até me custa levantar, de estar tanto tempo sentada. Artroses: conversa da outra mula.

Chego-me ao palácio, que à noite, com os estores fechados, queria dizer os olhos , ligo a máquina dos filmes . Nos os escolho, mas de vez em quando sai um que me entretém o sono.

Chego a rir, ou acho que sim, porque estando a dormir  não sei ao certo se aquilo é filme, ou sonho ou a puta da enjeitada que inventou essas merdas que estão constantemente a passar na cabeça das pessoas, que não há descanso , nem para varrer a sala de projeções.

Tenho frieiras nas pontas das orelhas. Frio do caraças.

Olha, aquele camião é o do Zé do peixe. A ver se me leva . Se vier com bons modos pode ser que receba um doce, da Poderosa.



Até amanhã coina. Puta de vida esta

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