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Homem Bala salva a Doninha bem-cheirosa



O super, mega, ultra-sónico homem Bala, atravessou o mundo de um lado ao outro, num relampejo de olhos para salvar a doninha bem-cheirosa, feita prisioneira do bando das formigas gigantes.

O nosso Bala ouviu o gemido de socorro da doninha, do outro lado do mundo, porque tem uns super poderes fantásticos e ouve realmente muitíssimo bem. Já estava com o seu pijama patusco dos pinguins , com os pés repousados na mesa – coisa que os meninos não devem fazer, porque é feio – a descansar de mais uma missão ultra-secreta de salvamento, quando recebeu a sua mensagem. Foi só o tempo de pôr aos ombros a hiper capa-asa e partir em socorro.

Habitualmente, é pela janela da sala, no terceiro andar, que ele costuma sair. E assim fez.

As formigas gigantes são tantas, que nem se poderia alguma vezes contá-las a todas! Mesmo que se pusessem todas alinhadas, sossegadinhas, era preciso que houvesse alguém cheio de paciência e muito bom contador, para chegar a um número final  e se por acaso se perdesse na conta, lá teria que voltar ao início da lengalenga.  Grandes trabalhos de contagem não são para qualquer um!

Dizia eu que elas atacaram a doninha quando a intrometida meteu o nariz na sua casa, formiga é um dos alimentos preferidos das doninhas. As formigas não têm mau feitio mas ninguém gosta de ser comido e mesmo a doninha não tem nada de pessoal contra elas, mas são docinhas e isso torna-as irresistíveis! Um petisco de se  tirar o chapéu!

As leis da natureza são assim, nem boas nem más, cada ser tem os seus trabalhos e as suas comidas preferidas, e não há inimigos nem malandrices. As formigas, por exemplo pelam-se com as folhas  verdes e bem tenrinhas e os pequenos arbustos não se queixam. As doninhas – já se sabe – papam as formigas, outros bichos comem as doninhas e os homens, comem tudo. São assim as coisas e nem as podemos discutir, só aceitar.

A bem cheirosa é um animal de bom carácter e estimado por todos. Reconhecida no reino dos animais, plantas e afins pela boa disposição, sorriso aberto, pronta a ajudar os habitantes da floresta, quando estão em apuros, mesmo dos que não se importam nada de a mastigar. E foi por esse motivo, que o homem-bala, que está sempre do lado dos bons, despiu o pijama dos pinguins, deixou o quentinho do lar e veio em socorro da amiga.

Chegou num repente pensando pelo caminho que realmente tinha sido uma boa compra, esta nova capa-asa feita dos materiais dos astronautas. Cara, mas dinheiro bem gasto que lhe proporciona um voo supersónico . Estacionou a capa-asa num galho de uma árvore e deparou-se-lhe um cenário insólito: a amiga tinha as pernas atadas com umas lianas, que são cordas feitas de ramos de árvores e estava esparramada de barriga para cima. Centenas ou mesmo milhares de formigas andavam em cima dela, para cima e para baixo, da barriga até ao pescoço. Uma plateia enorme, assistia e batia palmas desalmadamente. Quer dizer, se aquela coisa que elas fazem de estar a esfregar as patas da frente, é bater palmas! Nisso o Bala ficou na dúvida.

Como têm pernas que nunca mais acabam, se pudéssemos multiplicá-las chegaríamos a um número com tantos zeros que até nos dava a volta à cabeça. Calcula agora tu, todos esses pés juntos, o efeito que causam no passeio para cá e para lá: a grande tortura das cócegas.

A doninha ria a “a bandeiras despregadas” que nem uma perdida. Tanto tanto, que chorava.

Bandeiras despregadas é uma coisa que se diz e quer mais ou menos dizer: “velas dos navios ao vento”, “bandeiras desfraldadas” ou “bandeiras ao vento”. É rir como nos dias de festa em que só apetece mesmo é estar sempre de boca aberta a mostrar os dentes. Nos dias de festa, as bandeiras são desatadas para serem agitadas pelo vento e assim nasceu esta frase tão engraçada.

É que somos um povo de marinheiros e de barcos  e então estamos sempre a inventar frases destas para dizer. Frases feitas, percebes?

O homem-bala ficou sem saber como reagir. A chefe das formigas recebeu-o educadamente e disse-lhe que elas não tinham absolutamente nada a dizer sobre a doninha, que até gostavam muito dela. Mesmo assim, tinham decidido dar-lhe uma pequena lição, para não andar sempre a meter o nariz onde não era achada. E o castigo era pô-la a rir até mais não.

Chegada ao não e elas estavam bem atentas a isso, dariam por concluída a reprimenda e iria cada um à sua vida, amigos como antes.

O Bala, muito mais relaxado, aproveitou para se encostar a uma árvore deliciosa que estava a pedir que alguém se encostasse a ela, e ficou a assistir à festa. O dia tinha sido duro, salvamentos e mais salvamentos. A vida de herói tem as suas compensações, mas há momentos que se chega a casa com uma dormência nos braços, de estarem todo o tempo abertos a fazerem de asa.

Quando a bem-cheirosa já se tinha rido até à canseira, depois de livre das lianas e de barriga para baixo, deu dois dedos de conversa com o amigo, agradeceu-lhe com toda a simpatia os trabalhos a que se tinha dado de a vir salvar e despediu-se apressadamente .

O tempo de cativeiro deu-lhe uma grande larica, e tinha que ir à procura de comida, que se estava a pôr tarde. Nos bosques e florestas não há supermercados, nem lojas de conveniência. As formigas e mais as suas pernas, voltaram ao trabalho de carregar folhas, coisa que fazem seja dia ou noite. O nosso herói sacudiu o pó da capa-asas e meteu-se a caminho de casa, onde o esperava uma sopinha de agriões, aquecida no microndas, que amanhã, outra vez, o trabalho aperta e ainda bem que não inventam outro herói, senão ele ficaria sem nada para entreter o tempo.


Para sermos sinceros, a D. Mariana já não sabia muito bem como esticar a história mas o Joãozinho, menino menino - os únicos anjos visíveis a olho nu que os homens conseguem ver - finalmente adormeceu, o que lhe deu paz e descanso de tanta invenção para entreter o anjinho.

Os livros das crianças são sempre uma história em aberto. É quando elas começam a fazer perguntas ao narrador que este, para não dar parte de fraco, começa a seguir por outros caminhos. É nesse momento que as histórias verdadeiramente se inventam. Quanto mais tempo se aguentarem , melhores são.

D. Mariana fechou o livro. Arrumou-o na prateleira das estórias na ordem e corredor correspondentes. Fechou a porta da cabeça com uma chave que tem pendurada do fio ao pescoço.

Ajeitou suavemente os lençóis, puxou as grades da cama para cima, e tranquilizou-se que as gotas da vida continuavam a gotejar sincronizadamente do saco suspenso do cabide metálico, confirmando as leis da gravidade.

Também as máquinas continuam a emitir os sons habituais – ainda bem - neste pequeno mundo, já não se dá por elas.

Tirou a bata amarela, guardou no bolso o nariz vermelho de espuma, e encheu de Amor, o depósito do quarto.

Compôs o corpo despenteado de estar tanto tempo sentado.

Ao de leve encostou a porta, sem incomodar e despediu-se, até já, do seu menino-anjo.

Cá dentro é penumbra, lá fora está dia.

Percorreu os corredores brancos e frios e longos e aborrecidos e muito vazios. Desceu as escadas monótonas e muitas e escorregadiças e sem corrimões. Saiu do edifício de costas feitas e sem olhar para trás. Um edifício enorme, branco, soturno, adoentado. Ancoradouro das doenças.

A rua, acabada de despertar, esfrega os olhos. Enquanto esperava a carreira 27, rumo à simpatia da sua casa na Pontinha, lembrou-se de não se esquecer, que hoje, quando voltar ao turno noturno  de voluntariado, tem de contar ao Joaozinho que no reino dos animais não há mal-entendidos, nem zangas. Esta não vai ser fácil de explicar, mas é muito importante que o Joaozinho aprenda as diferenças entre os bichos e os homens, porque o Joãozinho, não o sabendo já, é um pequeno grande homem e esta aprendizagem dá jeito em todos os futuros por acontecer.

É um menino atento que percebe tudo. O tempo não lhe deu tempo de botar corpo, mas deu autorização à sua pequena cabeça para crescer numa correria desenfreada: ficar grande num lampejar de olhos.

Os anjos acreditam em tudo o que se lhes diz.



Descansa meu Joaozinho, até já.

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