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ROSTOS DO AMOR

  Esta história de amor não começou bem mas também não começou mal. No amor como noutros assuntos sérios não há cânones nem “guiões de visita”. Conheceram-se casualmente. No emprego. Os empregos das pessoas são uma fonte inesgotável de conhecimentos. A princípio tinham uma relação formal, profissional digamos. Se algum traço emocional, uma ligeiríssima pincelada, havia, resumia-se ao cumprimento da manhã e a despedida de fim de dia. Depois disso, cada um desligava-se do outro e seguiam independentemente ao que os esperava fora daquele ambiente. No entanto estas coisas são como as cerejas que não se param de comer quando são boas, e eles nos intervalos do trabalho enfadonho e burocrático começaram a falar sobre si e por aí vão sempre as coisas, até que inadvertidamente ou não, se acende a chama da curiosidade e daí a atear-se um fogo sem controlo, vai um fósforo, como se diz popularmente. Falaram e falaram até que começaram a falar com intenção. Nesse momento quem está atento, percebe l

DA BELEZA DOS FLAMINGOS

  O belo voo do flamingo e a graciosa forma como saltita as suas pernilongas no delta de águas pouco profundas e tépidas do rio, que classe. No inúmero reino das aves ganha destaque na sua finura, no porte, na forma tão educada como se apresenta perante a plateia do mundo. É nesta ave educada que podemos confiar. No convívio com as outras espécies e famílias, é amistosa, não alimenta conflitos desnecessários e dada a sua absoluta falta de ambição – não tem outros desejos senão ser flamingo – não apresenta ameaça para os outros. O flamingo preenche a sua ideia de felicidade e realização, nos chapais calmos dos rios. As inimizades que se lhe conhecem são os aviões, que não sendo aves, são uma imitação de  produtos compósitos. Seres de uma propositada frieza metálica, ausentes de qualquer tipo de sentimento e muito arrogantes, creem-se os soberanos dos céus e como são cretinos, pela sua falta de discernimento vão acabar por ganhar o território dos céus , porque os cretinos juntam-se mais

A FELICIDADE DAS PEDRAS

  As ondas suaves cristalinas estendiam-se a seus pés e nem dava contas certas da boa fortuna, da alegria de poder estar neste local, esta praia que é uma ideia, entre outras igualmente genuínas, quem sabe ingénuas, que faz do paraíso. Está sozinho, acompanhado de si, suficiente, a fazer este pensamento e outros que pensou antes como os que se lhe seguirão. Algo de muito forte que desconhece, atrai-o nas pedras. Da praia e outras. Por isso coleciona-as e sente-se feliz por ter esse gosto. Dá-lhes habitação em tudo quanto é sítio: no chão da sala, numa prateleira emoldurada com livros, como pisa-papéis sejam eles quais forem, de cozinha, de quarto de banho, de escrivaninha. Pode parecer estranho, mas sente-se acompanhado pelas pedras. Não se cansa de as olhar e tocar. Elas retribuem. As ondas suaves e cristalinas massajavam-lhe suavemente os pés, transmitindo, num processo em cadeia, uma sensação de grande bem-estar. Mais do que isso: de realização. Nestes pequenos prazeres: um passeio

VIDA SECRETA DAS PLANTAS

  As plantas dão-se bem umas com as outras porque não se invejam. Não têm nada para invejar. Entre si, não sabem que são bonitas, umas mais que outras, nada disso, dão-se aos seus brilhos sem ofuscar ninguém. As plantas só não gostam de se ver dispostas em jarros, porque isso significa que as separaram violentamente das suas raízes, e estão por um fio, ou seja, mais hora menos hora, morrem. Ao contrário do que se possa pensar, nem mesmo os minerais, nenhum ser gosta de morrer, ou pelo menos, estar à beira disso. É claro que os homens, que são quem afasta as plantas das suas raízes, tentam por todos os meios ao seu alcance, mantê-las viçosas quando as colocam em jarros, mas não sabem, porque não entendem nada de plantas, nem mesmo de si mesmos, que a frescura de uma planta está nos olhos de quem a disfruta. Isso, só as plantas e os incondicionais apaixonados o sabem. E não andam por aí a revelar aos outros, porque reside no recato de poucos o segredo bem guardado da beleza absoluta das

ESTÁTUA

  Uma estátua. Impávida como as estátuas sabem ser. Dão todos os sinais de ausência de vida, mas por vezes enganam. Há estátuas para as quais nunca olhamos e outras que não conseguimos afastar os olhos. Magnetismo sem explicação. As estátuas não têm substância e por isso tantos as desconsideram. A mulher tinha substância e podia ter sido estátua se tivesse calhado ser, à saída da bola na tômbola onde rolam as coisas e seres em potência de virem um dia a ser. Ela, ao lado da porta de uma conhecida loja de marca, fazia pender com a ponta dos dedos uma folha colada a várias outras folhas, para virem a ser maiores do que uma só. Na folha, explica por letra sua, ser uma artista sem trabalho. Ao lado, num recipiente pequeno mas suficiente, pequenas andorinha pregadeiras de belas cores e conjugações de distintos tecidos. Uma, à escolha, por uma moeda. Uma qualquer, não importa. Poucos leem a folha porque têm vergonha ou de si, ou dela, ou de ambos, ao ponto a que nos deixámos chegar. Recebe m

AMARRAS

  ** Um prisioneiro com algemas invisíveis. Na casa que comprou, a pagá-la toda a vida, um calvário. Agora, a casa a fazer-lhe uma destas. Asfixiava. Tinha a chave da porta, podia sair, podia entrar. O que importa isso se tinha uma barreira moral. Sim, moral. Não saia pelos outros e por si. Os outros também o deixaram de visitar. Seria por eles e por si. Uma confusão e um dilema. Aquela casa que nem sequer estava bem localizada, nem era particularmente confortável, que lhe custou uma verdadeira fortuna, era melhor nem fazer as somas todas, emparedou-o na fase da sua vida em que ele estava a sentir-se melhor no exercício muito difícil de alimentar uma boa conversa. Anos investidos nisso, aprimorar e limar arestas e agora que se sentia um tribuno, gostando de se ouvir, não tinha com quem falar. Para as paredes que não lhe respondiam, ingratas, o que ele investiu nelas. Tinha uma colecção antes feita de selos. Pôs-se a escrever postais. Todos os dias depositava-os num marco do correio, em

O VOO

  Por sortes ou azares, ou coincidências, ou simplesmente porque foi assim, ele cresceu a deliciar-se com o voo picado dos falcões peregrinos. Como em pequeno tudo se imita, imitou o voo destes, alucinadamente letal. Tanto praticou que conseguiu uma imitação aproximada. Os falcões ficaram curiosos, depois omitiram porque tinham mais que fazer, que é procurar a continuação da sua vida na morte dos outros. Caçando portanto. Ele é um Abelharuco, pássaro lindíssimo mas humilde no tamanho. Convenceu-se que era uma ave de rapina mas nem sequer come carne, é completamente vegetariano. Os seus perdoam-lhe. Quem nos ama perdoa tudo. Foi fruto do encadeado de acontecimentos que lhe sopraram a vida. Não se pode ser tudo o que se quer ser mas há quem se convença do contrário