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Mensagens

OS ARES

Apanhava ar. No ângulo que fazia a esquina do murete que delimitava a casa, antiga, ainda com telhado de colmo, num barraco onde mal cabia ele, ali estava, velho, sentado num cadeirão de madeira, onde se percebia existir uma almofada, igualmente velha, que lhe ampara as costas. Diz-se apanhar o ar, porque é o que ele faz. Não está ali para ver ninguém – poucos, muito pouco se passa –, as vistas, nenhumas em especial. Está para arejar, isso mesmo, sair de casa, onde uma pessoa se pode encerrar, ir-se encafuando, distrair-se de si e do mundo, e nunca mais sair, encarquilhando lenta e inexoravelmente os movimentos, as vontades, o corpo, envelhecendo o espirito e despedindo-se da alma. Aquele cubículo, onde jamais caberia deitado, só mesmo sentado, tem uma porta, que está aberta, e ele, ocupando todo o espaço do espaço exíguo desse remendo de esquina de uma casa, é visto por este transeunte ocasional, visto pela metade (só se lhe vê a parte direita do corpo que areja, a out

AS RELAÇÕES DO SENHOR M. COM A.

O senhor M. esteve vinte e um anos fechado em  casa, por decisão própria - um bom apartamento -,de onde não saiu, nem para cumprir obrigações, coisas básicas, pagamentos. Aconteceu-lhe este fenómeno no dia em que foi a enterrar  o amor da sua vida. Não a enterrou verdadeiramente enterrada, no sentido de uma pessoa viva que o deixa de ser - e morre – sendo obrigatório fazer-lhe o funeral. Fê-lo no sentido figurado. Como o indica a lei e ele é homem de seguir os protocolos, encomendou as exéquias da descida à terra ou da subida aos céus (na direcção que se preferir), e a defunta, neste caso viva, seguiu o seu caminho. Ele, vestiu um luto que não abandonou mais. Uma vez vestido, é até aos dias que faltam cumprir, seguindo um hábito ainda recente, dos meridionais. Faziam-no mais as mulheres, imagens de fantasmas negro baço, algumas ainda na flor viçosa de uma idade por desabrochar, tão novas, azares da vida, maridos que morreram cedo demais. O facto de ter abdicado de

O PIANO

** Um piano tem  88  teclas,  brancas  e  pretas,  de  madeira.  As brancas são revestidas de  marfim  (já  não),  ou um  compósito  de  plástico,  nome técnico;  as  pretas,  de  ébano.  No  tempo  em  que  viveu  Mozart,  era  ao  contrário: as brancas eram pretas e estas brancas. Há pianos de cauda e verticais,  estes  mais  bonitos,  mas  pouco  práticos  de  arrumar.  São instrumentos caros. Há quem diga que são o instrumento musical mais completo,  aparte  a  voz  humana,  claro,  que  não  é  um  instrumento,  ou  então é, mas biológico. O   senhor   A.B.   gosta   de   tocar   piano,   de   ouvido,   e   na   realidade   gosta bastante, mas não tem um piano e nunca tocou a sério em nenhum. No entanto,   tem   dois   virtuais:   um   no   armazém   da   ourivesaria   onde   trabalha   e   o   outro   em   sua   casa,   mais   propriamente   na   casa   da   madrinha, onde   vive.   Diz-se   que   são   virtuais   porque   na   realidade   não   são pianos verdadeir

GATAFUNHOS

Era um homem que o fazia, quem mais poderia ser? Os animais não têm essa habilidade. Também não era um espírito, um fantasma, uma entidade subtil, como se lhes possa chamar, se é que os há havendo, destes seres, que não inventados, com alguma vida própria e individualizada. A existirem, comunicam mente com mente, em ligação directa, capacidade a que chamam telepatia. Mecânicas de ordem superior. Não precisam de rabiscar incongruências nas paredes, penetram nos âmagos sem avisar e dá-se a comunicação. Era pois, um homem, tinha que ser de ordem humana. Com isto levantam-se questões. Que tipo de homem faz isto? Por puro exibicionismo? E porque escreve assim? Se tem outros meios mais eficazes? Dita a verdade, nem se sabe se isso é uma escrita. Não raras vezes procuramos lógicas consoladoras onde não existe nada mais do que vazios, gatafunhos inexpressivos. É certo que há muitas línguas e idiomas, centenas, algumas já nem faladas. Há assim muitas formas de se dizerem amores e