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DIA LIMPIDO

Hoje, como todos os dias mas particularmente hoje, sem razão nem justificação pessoais, o sol brilha. A luz está luminosa, diferente, o céu despejado, por isso azul sincero. Eu, a assistir a este empolgante espectáculo da natureza, para não perturbar a harmonia temporária do universo, emociono-me suavemente. Continuamos, o sol, o céu e eu, a viver, espantando-nos por conjugações em dias assim, que tudo parece concordar no imperativo de sermos felizes. Só não aproveitarmos a oportunidade se formos desconfiados. Amanhã pode estar um nevoeiro cerrado, mas nada é definitivo.

DO JARDIM

A mulher do livro voltou a aparecer, não desiste esta mulher. Aqui, no jardim do costume, meio escondida por uma árvore, porque hoje faz muito calor e está a ler, dá a parecer, ávida, um livro. Para o ler dessa maneira, deve ser um excelente livro Entretanto e numa justaposição sincronizada do tempo dela, com o da jardineira, mal paga (tem todo o aspecto de o ser) mas muito feliz pelo trabalho que tem, esta olha para ela com desconfiança. Não por estar a ler um livro, mas por se estar a esconder à sombra de uma das árvores mais banais do seu jardim (esta mulher jardineira tem um grande sentido de posse e chama as árvores pelos nomes, com um carinho assertivo. Não vindo elas até si porque não se locomovem, de alguma forma atendem ao chamamento do nome, emanam-lhe boas energias. Passa um homem de fato com ar altivo e nariz com o mesmo qualificativo, atrapalhando as duas. Passou no entanto rapidamente saindo assim da vida delas. Os homens nestes preparos de roupagem e nariz

MAPA MUNDI NO SECÚLO XXI

* No meu tempo, o tempo vivido que todos temos e reclamamos nosso, sonhava com paraísos longínquos, inóspitos ou não, todos a encaixarem na minha ideia de paraíso, salpicando de nomes magníficos e poéticos as cartografias que estudava, sonhando, em livros calhamaços grandes e pesados, nas bibliotecas públicas que frequentava humildemente, porque os livros sempre me puseram em sentido, de respeito e deslumbramento. Entrava receoso, mostrava o meu cartão de utilizador esperando com essa identidade na fotografia do cartão, abrirem-se os portões do jardim das delícias. Sentava-me num recanto que lembro bem por ser um ponto estratégico, quando fugazmente descansava os olhos das linhas de frases e dos desenhos dos livros, e podia desse ponto lugar quase invisível, ou talvez mesmo, olhar com pormenor para os detalhes dessa biblioteca de madeiras nobres torneadas nas esquinas e nos ângulos. Tomava nota da paisagem não sempre a mesma, que observava da janela, diante mim, como sendo a

NUVEM

Está tudo dito e eu tenho ainda tanta coisa por dizer, sabendo que é inútil, uma repetição, plagiar os outros. Alguém terá dito melhor, alguém terá sido cru, cruel na forma como o disse, alguém terá adocicado as palavras, mas no entanto nada faltou para ser dito. E eu que o queria dizer, porque o vou fazer? Já não vale a pena. Revejo-me no que os outros disseram, e se por momentos, efémeros, tenho o relampejo de que poderia dizer esta ou aquela coisa de uma forma diferente, talvez mais bem dita, logo me convenço que não. Tudo já foi dito e foi peremptório e final. É sensato estarmos calados e continuar a olhar para as nuvens em movimento tentando entreter o tempo que falta.

ESQUADRIAS

Sessenta e seis quadrados. Onze cinzento-nuvem carregada de chuva, onze cinzento antracite, onze castanho cor de não se pode dizer o que parece, onze menos castanho quase branco sujo. A contrapor tanta escuridão, onze branco não totalmente sujo, ainda assim próximo, e finalmente, onze quadrados amarelos, divididos em números iguais, seis, entre o amarelo sol vivo escaldo e a limonada, mais suave. O tapete da sala, estende-se sobre o chão em laje de tijoleira, aos quadrados, talvez vinte por vinte centímetros. O contorno do tapete, rebordo, acompanha a linha de união de uma fila de tijoleiras de forma a que o conjunto chão-tapete, se encontram em harmonia de simetria. Num dos seus quatro lados, o primeiro, o tapete de sessenta e seis quadrados de lã de boa qualidade, alinha com a linha de fronteira como já se disse da tijoleira estando esta por sua vez alinhada ao rebordo em PVC das portas de vidro duplo com mosquiteiro que separam a sala de estar da varanda, o dentro e o

AURORA DOS TEMPOS HUMANOS

Volteando, rodeios detalhados do olhar, sobre o nada, procurando o companheiro. O nada, enorme espaço vazio diante de si, sem que se vejam seres com vida, esporádica. Ervas sim e escassas árvores, pequenos arbustos que mal vingam na inclemência do clima. Pedras, amontoadas, rolam amíude encostas abaixo, blocos frios de granito. Desse ponto alto, privilegiado, um patamar estreito, vê-se uma parte substancial do vale profundo. Passa um rio revoltado, por isso serpenteante e rapidíssimo. Ela escrutina a presença do companheiro no cenário montado pela paisagem inóspita. Anda a caçar animais, atitude primordial. Não o vendo para já, não intuindo sequer nenhum perigo eminente, nem para si nem para ele, ela continua sentada de costas direitas apoiadas numa parede plana. Um trono natural. Põe-se o sol, o céu compõe-se no epitáfio do dia de cores inusuais para a época do ano. Findo o acontecimento solar banal porque está sempre a acontecer, depois de o usufr

NOTICIAS QUE MATAM

Homem mata mulher. Crê-se que foi ácido muriático. Suicidou-se a seguir, cortando, ambos os pulsos. Ciúme. A vítima, involuntária desta barbaridade, estava na flor da idade. Uma mulher, que não sabia nadar – contaram os vizinhos próximos – atira-se de uma ponte romana antiquíssima, da época destes, ao rio. Afogou-se. Foi passional. Deixa um menino com três anos, ainda com dificuldades no falar, mas já anda. Jovem casal em início de vida juntos, põe termo a esse início, transformando-o sem que nada o previsse, em final. Ingeriram compulsivamente uma quantidade não contável de comprimidos de tudo o que tinham lá por casa. Foram encontrados pela mãe de um, na cama e ausentes de sinais vitais. A senhora ajudava uma vez por semana nas arrumações da casa. Problemas financeiros insolúveis. Créditos à banca. Homem idoso mas digno e limpo, deixou de ser visto pelos vizinhos, dias a fio. Os bombeiros chamados por alguém anónimo, ao local da sua residência, encontraram-no muito