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Mensagens

A HIPPIE, DE NOVO

No jardim que frequento desapareceram – não as vejo há mais de dois dias – as mulheres que leem livros, absortas. Deixaram de estar sentadas, pelo menos nos últimos dois dias a lerem livros alheadas das pessoas, como eu, que estão no jardim só para comentarem factos inabituais, como este. Elas podiam distrair-se mais saudavelmente só em olhando, por exemplo, para os melros,os pardais, outros de nome não conhecido,ou até os cães domésticos a cumprirem os seus curtos passeios higiénicos. Mas insistem em ler! A dizer isto, e uma das duas que leem, acaba de chegar. Em espírito de missão, faço uma inquirição discreta. Pago, levanto-me sorrateiramente da mesa da esplanada inflacionada e má - mas é uma esplanada concessionada num jardim, não podia ser boa. Finjo que vou inspecionar um insecto que só eu vi no "National Geographic" - que existe, inventando-o eu - no relvado por trás dela. Aproximo-me pelas costas e ela sem dar conta, todo o corpo concentra

ASCENSORES

São três a disputarem a pulcritude das ascensões às alturas, que para baixo todos e mais os santos ajudam. A subida é pouca, somo merenscórios (melancólicos, para dar oportunidade a palavras que ventaneiam pouco) e pequenos, obedientes à escala humana, inclusive nos altos e nos baixos. Seja como for, uns cem ou duzentos metros no altímetro, acerca ainda assim as pessoas do céu ridente e de um azul que os locais dizem ser só seu – se é isso o patriotismo, seja esse azul o mais belo de todos - a pintar esse espaço infindo, nesta cidade de Lisboa nos meridianos dos fins das Europas. Andam os três em disputa desde os finais do século dezanove , quase clubes de futebol, que depois de ter sido escrito duvida-se da escolha do exemplo que não é dos mais apropriados!    A sua missão nos tempos arcaicos – quando o  interior das carruagens se iluminava tenuamente com luz de velas, e o sistema de subida-descida se fazia por contrapesos em depósitos de água nas próprias carruagens -

ENSAIOS DE VERÃO

Quando alguém, não se sabe quem, abre as persianas dos telhados do planeta Terra e os raios de sol chegam com menos filtros, acalorando a sua superfície e todos os móveis e imóveis existentes; quando esses raios piscam e repiscam brilhos intensos e reflexões de luz, as pessoas mais sensitivas põem-se felizes e simplificam-se, saudando como podem e sabem e usufruindo, as energias promissoras. Acontece um retorno ao original, a um estado puro, acontece uma interrupção do tempo ou dá ideia disso. É um limbo, uma antecâmara de qualquer coisa boa. São assim os vislumbres dos dias de primavera que ensaiam ser verão, a porem as pessoas à prova, para ver se já estão preparadas para lidar com a canícula. É o anúncio com estilo dos tempos de glória, a rainha das estações do ano em que quase se consegue esquecer a melancolia com os pezinhos em molho de água fresca, massajados pelas águas dos mares calmos, a inaugurarem as primeiras aventuras balneares. Nos primeiros dias de s

UMA PELO MENOS ERA HIPPIE E LIA UM LIVRO

Ontem vi duas mulheres lendo, num jardim com esplanadas. A princípio desconfiei mas dei o benefício de perceber antes de lançar um anátema, que é pior que um perjúrio. Aparte a parte toda nas cadeiras das esplanadas e os bancos residentes dos jardins, as outras mulheres e os outros homens que preenchiam os lugares, sentados os seus corpos neles, não liam e nem sequer falavam. Faziam o que normalmente fazem todas as pessoas de bem: organizavam a sua vida, os contactos e o lazer,  com  auxiliados pelos seus telefones portáteis. Enquanto isto acontecia - o que não era nada de anormal porque só eu notei essa actividade subversiva de duas mulheres a lerem um livro em plena luz do dia - dos passantes e por sexo, os homens iam mais apressados do que as mulheres c om os semblantes densos, talvez a dizeren  preocupação ou responsabilidade.  Podiam ser médicos ou padres, ou somente financeiros.  Passavam também homens musculados com roupa justa a quererem parecer ai

ANJO

Barricado na minha janela, fechada, observo o mundo. O mundo é a rua que se apresenta diante mim, que a consigo ver desde o seu início, à esquerda, até o seu fim, à direita, porque é nesse sentido  - vá-se a saber - que fluem as pessoas e os carros que passam na rua que me consome o tempo dos dias. A minha rua é o mundo, é pequeno e previsível o meu mundo. Nela não acontece nada de especial, sempre as mesmas caras, praticamente; os carros identifico os que estacionam e não me interessam particularmente. Há crianças na minha rua que jogam futebol, são irritantemente barulhentas, porque estou para velho e tudo me irrita. Corro com elas quando posso e depois fico com remorsos porque já fui criança e gostava de jogar futebol na rua. Em frente da minha janela, mesmo do outro lado, há uma paragem de autocarro suburbano, que por ser suburbano passa muito espaçadamente, sem hora marcada, vazio de poucas pessoas, geralmente de cor, sentadas e inermes. Desistidas. Esta

GABINETE DAS CURIOSIDADES - CRÓNICA ÚLTIMA

Pintar é estar doente dos olhos. Fica bem que as histórias tenham um fim e sigam canonicamente as regras ditadas de as bem contar. Não há ninguém que não goste de um bom ou mau desfecho, tem é que haver um, para se seguir em frente e não ficar preso ao passado. Estar colado a ontem é desencorajador e se não se despega, aumentam-se atrasos irrecuperáveis, o tempo a passar, que voa, e não se regressar ao presente, que só assim se pode desejar o futuro. o Gabinete das curiosidades foi um tentativa volátil mas intencional de museu privado de objectos de vida. Não foi uma tentativa, foi um acontecimento e não termina porque os objectos se tenham desentendido - vivem há muito juntos -, têm naturalmente os seus enguiços, picos de irrazoabilidade, mas são uma família, por vezes italiana: muita gritaria mas amam-se todos. O Gabinete termina porque tudo tem um fim e este espaço vai ser um novo templo de finos manjares, sabores dos céus, na terra, borbulhantes, que mais tarde se anunc

VAMOS BRINCAR AS PALAVRAS

Não é boa a primeira impressão de uma parede ampla preenchida com livros, desde o chão de madeira corrida encerada até ao tecto de estuque com perfis brancos trabalhados. Da aparente inutilidade de um objecto ao conforto da sua companhia, por vezes corre uma vida, por vezes uma é pouco. Já conhecia os livros e iniciara uma modesta mas voluntariosa biblioteca com dois ou três fascículos de banda desenhada a preto no branco, do personagem Major Alvega, aviador português ao serviço de sua majestade na velha aliada Albion . É possível ter sido o meu primeiro herói, ele e Toto o cão caçador do meu avô, animal fidelíssimo com uma paciência búdica que encarnava a contragosto o papel de touro em lides improvisadas que eu fazia no quintal da nossa casa anterior a esta, onde nasci mas não cresci. A sala do Pedro tinha um oceano de livros e era de pôr a escassear o fôlego a um pechincho. Alguns livros cortam-nos a respiração, deixam-nos ofegantes, mas é prazer. Com sete ou o