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O Paquistão e as comemorações do Natal

A notícia foi para o ar às 20h52, precisamente cinquenta e dois minutos após o início do Noticiário. Cinquenta e dois minutos preenchidos com assuntos prioritários – domésticos – os temas habituais. Nos episódios do mundo, neste dia também aconteceu um massacre, que só seria importante se não fossem mais importantes as luzes a acender e a apagar da árvore artificial. No Paquistão houve um atentado talibã. Morreram 132 crianças, mas não faz mal, porque lá não se comemora o Natal. Essa fatalidade não enegrece a comunhão entre os homens, que por essas bandas, esta época do ano diz-lhes pouco. Lá não se preocupam com o presépio, os pinheirinhos iluminados, o bom do bacalhau, os sonhos e as rabanadas, os presentinhos. São gentes sem preocupações e como tal amorais. Na Austrália morreram três pessoas, duas que estavam a tomar café na cafetaria errada, e a terceira que sendo bárbara quase não conta como pessoa.  Lá na Austrália, comemoram o Natal e todos pensavam que po

CONTO DE NATAL A UM SEM ABRIGO

Fome. Não é de pão, se bem esquecidos de uma refeição decente. Perdeu-se o apetite pela comida porque ela anda arredia. Faz-se um esforço de Hércules no auto controlo para manter a biologia no seu lugar: obrigatoriedade de viver porque não há outras oportunidades mais interessantes. Não é a fome que revolve os interiores, é a escassez de outros petiscos a cujo preço não se chega. Esses acepipes são palavras, que têm cores fortes, sons agudos, ingredientes de conceitos complexos e muito sérios. Revisite-se o cardápio: Estima. Haverá fatiota mais galante que esta? Calcorrear a calçada trajados de limpo? Lustrosos? Sorrir à cara cheia e estar sempre a tirar o chapéu em mímicas de pantomina aos transeuntes que passam incrédulos pela calçada? Deixar rasto, a espuma dos dias que passam. É isso, vincar o caminho. Útil. Todos os parceiros sem deixar de fora quem está sentado nas margens dos passeios. Dar a mão, receber outra, usar o seu impulso para o acontecimento

MANUAL DE ESCRITA CRIATIVA

- Desculpe mas olho para si e pelo ar latino, não vou falhar se disser que fala português. É verdade? - É verdade. - Tem tempo? Espero alguém. Quando esperamos é porque temos tempo. Digo que sim, se bem a intimidade com o café tenha ficado por aí - Já ouviu falar de escrita criativa? Sabe o que é? Interessa-se pela leitura? Perguntas difíceis. Tento pensar antes de me comprometer com uma resposta. Trata-se de um desconhecido e estou numa esplanada, local incómodo para nos encostarem à parede. Para além disso tenho dúvidas. Tenho sempre tantas dúvidas! - Acho que sei o que é escrita criativa - sobre a leitura mantenho-me calado. O homem, ainda jovem (trinta e poucos talvez) põe-me à frente dos olhos um volume de páginas A4 encadernadas com um espiralado plástico branco e uma mica transparente a fazer de capa.  Reparo, sem saber porque reparo, na gola acastanhada da t-shirt que já deixou de ser branca. Salta à vista esse rebordo na primeira linha da

Tem sido um Outono muito chuvoso

E húmido. As alterações climatéricas nas últimas décadas habituaram a um clima mais ameno, apesar de um que outro pico tempestuoso inesperado. Antes as estações estavam no sítio – tudo tinha um sítio - a época certa para cada uma, e na sua época todos sabiam com antecedência as manifestações de tempo que iriam acontecer, facilitando em muito as arrumações dos roupeiros. Era uma monotonia,  porque sempre previsível, mas era assim. Ultimamente com as mudanças bruscas, ficou-se sem saber o que vestir, no entanto as pessoas nem se queixaram, pelo contrário, têm andado muito mais felizes dada a já referida complacência dos calores, dos dias mais solarengos, puxando a sair de casa e flanar por aí. E a felicidade rondaria não fora o facto dos fenómenos inesperados, que alteraram na última década o nosso microclima. Este ano então -  as condições têm-se agravado e muito – está a ser um verdadeiro vendaval de temperaturas amenas, uma enxurrada de episódios sem anúnc

NOTAS DE INTERVENÇÃO

A falência do regime, que se arrasta vai para lustros que nem se contam todos, não se explica com justificações na dimensão do país, nos seus recursos, no minguar de gentes, na sua localização periférica. Facilmente se desmontam estes obstácul os que dão jeito. Sobre tamanhos e medidas, temos de tudo: grandes dimensões como a Rússia ou a Índia, que não descolam de uma  emergência falaciosa, ou uma Suíça e Holanda, que são exemplo de pequenez com grandes sucessos e riqueza - talvez também falaciosas. Dos recursos, o que são os recursos? Hoje estão em alta nos mercados, amanhã outros são o ouro que se procura. E os recursos são materiais, imateriais, coisas ou ideias, e todos eles, separadamente ou em conjunto, podem ser valiosos. O petróleo que tirou as tribos dos desertos arábicos e os pôs a construir prédios de olhar ao infinito e a conduzir rolls-Royce forrados a diamantes, quando acabar, dará lugar a outras energias e fará ricos quem as produz e vende.  O

TANGO DAS PALAVRAS

A arte da escrita estremece em terramotos quando abusada com imoderação. Acelere-se aos limites do pedal: nos acertos, nos falsos desacertos das palavras, em frases estranhas, oblíquas, fora do tom. Avive-se o colorido com vírgulas manhosas, descompostas, exclamações noutro contexto, pontos finais ao contornar esquinas, obstáculos inesperados que fazem tropeçar. A escrita ganha o céu quando o homem a põe a secar ao sol, à chuva, aos vendavais, escorrendo-se dos pesos inúteis, no apoteótico esplendor da sua nudez primordial. Assim como é! Toda a tentativa de limar arestas e tapar buracos com massas baratas, alisa e limpa a sua superfície, mas também a impermeabiliza das chuvadas torrenciais de belo que curtem a sua pele para os doces usufrutos da alma. Há textos, muito bem escritos que são qualquer coisa, mas não arte. São diplomacias das canetas: educados e sensaborões. Bons textos no entanto. A beleza da escrita habita rostos cheios de rugas, lav

O ARTISTA PERDEU A IDENTIDADE

Antes de inaug urar a exposição, ainda à porta e sem ter cortado a fita – inexistente, porqu e já não há fitas para cortar, nem quem segure a tesoura das fitas - o Secretário de Estado, fez uma pose a fingir-se de simpático com o artista, mas é óbvio que foi uma pose de grande maçada: o convívio com artistas mina a consciência, deve ser feito à distância, com máscara, para não se adoecer com o vírus da sensibilidade. As poses é suposto mostrarem o lado mais fotogénico, que no caso deste Secretário é o lado direito – o esquerdo é habitado por uma verruga, que lhe desvanece a possibilidade de beleza numa irremediável desarmonia do rosto. Estavam presentes os fotógrafos e as televisões, não porque uma exposição de pintura seja uma coisa importante, mas porque nesse dia tinha-se falado numa remodelação no governo, e este Secretário era dos substituíveis - preferem-nos de linha branca, baratos só que depois implodem mais cedo. Troca-se por um novo na loja dos chineses, sai em co