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EU NÃO QUERIA NASCER

 


Em tudo era parecido com a vida. Na realidade, era a vida, também é assim. Não via senão o escuro, mas o escuro é o não ver, pelo que não o via. Faltava-me esse sentido para ser pleno de todos, e por isso dizia viver parecido com a vida. Mas não. Vivia. No conforto de um embalo, constante, quase ritmado, ouvia sons afastados, ainda não palavras, mas eram palavras e eu não sabia. Não as tinha aprendido. Ouvia o que se dizia fora do escuro, e fora do escuro estava o mistério, para lá das paredes de matéria flexível e desconhecida que me envolvia, como um casulo. Uma gruta. Gostava dos sons assim como gostava dos sons que eram músicas, e mais uma vez, como não sabia, não os identificava com um nome, mas gostava. De todos, o som que mais ouvia, repetidas inúmeras infinitas vezes era “filho”. Um chamamento longínquo, uma espécie de sussurro. Não o sabia, mas era de todos o que mais gostava de ouvir, e descansava, protegido, descansava profundamente e bem e feliz e satisfeito. As minhas mãos, os meus dedos, numa escala tão pequena, por finalizar, tacteavam. Os dedos procuravam contactos, na ausência de luz numa matéria líquida, mas densa, envolvente, quente, promissora de vida. Era assim que eu ia descobrindo esse pequeno mundo, o meu, um ensaio de universo, ali, todo concentrado. Por ser tão bom, por me sentir tão bem, falhei propositadamente a chamada da porta que se abriu para eu passar, mais de uma vez falhei, um jorro concentrado e forte de uma luz que nunca tinha visto, muito clara, mal abria os olhos, a oposição ao escuro, que me assustou e não quis. Podia ser uma desconfiança. Mas não, não podia ser isso. Eu ainda não conhecia a confiança, para ter uma ideia firme do seu contrário. Neguei e reneguei. Não queria, mas era inevitável, teria de nascer. Esperava-me a contagem do tempo, uma ampulheta invisível que determina tudo: o antes, o durante, o depois. E que um dia também, deixará de contar.

Eu não queria nascer, porque estava bem onde estava, não sabia que nascer era igualmente outra realidade de viver. Nem melhor, nem pior, inevitável, no meu caso pessoal. Tem-se sempre medo dos princípios.

À terceira foi de vez, obrigado pela natureza, expulso. Ultrapassei com todo o vagar a porta, dei de caras com o mundo. Na sua intensidade para quem acaba de sair das trevas. Depois do susto inicial e passadas todas as fases e experiências, fiz-me um homem. Mantive sempre um carinho muito especial pelas palavras, memórias vagas dos sons que me adormeciam quando estava no útero de minha mãe.

Respeito-as, dei-lhes novos usos e invenções. Cheguei a escrever palavras com intenção de usufruto de terceiros. Fui feliz, porque estive sempre atento e cristalino. Estabeleci laços sociais, gerei filhos que se assombraram quando se assomaram à porta, tal qual eu, que o fiz no dia zero, mas já não sei nem recordo desse momento, ou talvez sim. São memórias que logo se extinguem, cabeças de fósforo, não vá dar-se o caso de a primeira experiência dar a querer voltar para dentro. Uma impossibilidade técnica, mesmo que mãe e filho estivessem nisso de acordo. Não se nasce em vão e eu, apesar de ter dias menos conseguidos, só quero continuar a viver. Não há melhor coisa que isso: uma luz que brilha intensamente e sempre. Até que um dia se volte a apagar, ou não.

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