Merendinha do Arco
Higiene – Honestidade – Rapidez
Dito assim tudo se aceita. Pode não ser a melhor comida do mundo
– mas é muito boa. O atendimento oferece os dias melhores e menos bons da
natureza humana; a intimidade é nenhuma porque os clientes se sentam em mesas
corridas partilhadas com quem está;mas com este anúncio-enunciado exposto numa
moldura em lugar de destaque no estabelecimento, não há desculpas nem
argumentos: só pode ser gente séria a dizer uma coisa destas. Não tem
discussão.
É uma publicidade com princípios. Nem sequer é uma publicidade,
é o que os ingleses chamam uma “mission
statement”, e nós em bom português local devemos dizer: Declaração de
princípios.
Há empresas de grande gabarito que se esfarrapam para conseguir
“missões” com esta qualidade. Gastam
fortunas com criativos de luxo para imaginarem tiradas com esta força, que
credibilizem e garantam o respeito das suas marcas.
Na “Merendinha” não precisam de criativos publicitátios, só se forem almoçar.
Longe de comparações, hoje não se promovem os negócios desta
maneira, com apreciações assim. Parece bacoco, velho, embaraçoso, do
antigamente, ultrapassado. Optou-se pelo vistoso das imagens. Uma bela palavra,
um slogan oportuno, desvalorizaram,
não pagam dividendos.
No entanto a imagem leva frequentemente ao engano do conteúdo
que anuncia, mas é mais difícil chamá-la à responsabilidade e as agências
agarram-se a essa muleta para disfarçarem a sua falta de qualidade.
Quem põe na marca do seu estabelecimento que é higiénico,
honesto e rápido, pode correr o risco de estar a mentir?
Pode, mas não o faz se quer continuar de portas abertas como este
restaurante, situado logo a seguir ao arco e de frente para uma casa que vende
prazeres do sexo.
A Merendinha do Arco, apesar de se situar no epicentro do
histerismo turístico que acometeu Lisboa, outrora bela, tem sobrevivido com os
seus pratos tradicionais, os seus petiscos, o copo de vinho servido
directamente da pipa de madeira, acompanhado de um pires de torresmos para
acamar o álcool.
As moelas, as iscas, os carapaus com molho à espanhola, o cozido
à portuguesa, continuam no cardápio. Como não estão traduzidos, os novos
clientes – estranhos estrangeiros - não sabem o que são, não os pedem, e perdem
uma experiência gustativa inenarrável. Se o fizessem – espécie de ritual
iniciático para ser português - entrava-lhes o mal da saudade e nunca mais se
poderiam libertar desta geografia, do convívio com a gente meio-triste,
meio-alegre, meio assim-assim, que somos nós.
No entanto e a que conste, já foram vistos eslavos deslavados a
comerem bacalhau cosido com todos, saxões arrotadores a digerirem polvo à
lagareiro, asiáticos palidíssimos a provarem pataniscas. Todos com gosto.
Está para um dia destes que os donos do estabelecimento vão ter
que encomendar uma tradução decente para as tripas e os pipis.
Uma tradução débil pode levar a mal-entendidos civilizacionais,
pelo que se aconselha prudência na escolha dos termos certos, não vá a mão-de-vaca,
causar danos relacionais entre os honestos restauradores e um cliente exótico
mais sensível às diatribes das línguas.
Comentários
Enviar um comentário