Esqueceu-se a imagem de uma folha de papel com palavras
alinhavando frases.
Sonhos acordados, poesia.
Os homens deixaram de ler. Há mais de uma geração, duas
gerações. Era cansativo, consumia-se tempo sem garantias de um bom desfecho. A
vida não se toma de paixões com o que atrase a sua permanente urgência de
apanhar o futuro, e os dois têm assuntos íntimos para resolver, adiados. Andam
sempre na eminência não conseguida de apanharem os seus calcanhares e
resolverem-se, e nunca se apanham.
Há muitos anos que se esgotaram recursos da terra
essenciais à vida dos homens, que na sua previdência natural, assistiram a isso
como espectadores desinteressados.
As florestas consumiram-se. Foi assim que deixou de haver papel,
e livros.
Nenhum dos dois factos – a falta deles - alteraram a vida das
pessoas. Árvores e livros.
A imagem aroveitou e substituiu a palavra escrita pensando-se que seria mais
simples. A imagem diz mais coisas em modo concentrado, mas o que aconteceu foi
que o Homem perdeu a paciência. Ler tornou-se uma ocupação pouco prática,
aborrecida, escura.
Os livros ocupavam espaço e acumulavam pó, eram insanos.
Acabar com os livros e destituir a palavra, foi um bem
que ainda hoje não se alcança.
Os pensamentos são correntes imparáveis que emergem palavras à linha
de água da cabeça. Estas, se podem escapam querem liberdade, uma ambição que as
palavras têm.
A cabeça, a menos que se tenha fechado de comunicação com o
mundo, não consegue por muito tempo impedir a fuga das palavras.
Há dois tipos de palavras: as que são ditas e se evaporam saindo
disparadas a vogar para o infindo, e as que se escrevem. Estas são apanhadas à
porta do pensamento, a ver quem passa, e distraídas por serem voyeur são capturadas pelos lápis. Não
cometeram delito, mas como em cada pensador há um Procurador do Ministério
Público, elas são amarradas por cadeias invisíveis às folhas do papel. Um livro
não é mais que um ajuntamento inusitado de palavras prisioneiras, acusadas de
não-delitos incomuns.
Eram assim os livros.
Recorda-se um dia, a que se junta a recordação de uma
temperatura amena e uma luz difusa de início de Outono, quando os livros
existiam, comprar-se por uma bagatela, a um vendedor mal-encarado de rua -
talvez porque não tivesse querido ter essa profissão - um livro de folhas por
cortar.
Em casa, deu-se uso a um canivete bonito, desflorando as folhas
do livro, com vagares de domingo e antecipações de usufrutos.
Susana, recentemente achacada pelas produções hormonais
descontroladas da adolescência pergunta admirada o que se estava a fazer, nunca
tinha visto um livro com as folhas por cortar. Explica-se ser a garantia da sua
virgindade. Ninguém antes o tinha lido, a esse pelo menos.
Ela responde que era um livro onde as palavras estavam aprisionadas.
E chegou esse momento em que as prisões dos livros ficaram
sobrelotadas. Com prisioneiras a cumprirem penas de todo o tipo de delitos. Os
de poesia eram as prisões de alta segurança: encerravam as delinquentes mais rebeldes,
manipuladoras de massas, chegassem elas alguma vez às massas! As poesias,
encantamentos potentes, se instaladas nas cabeças dos leitores causavam danos
neuronais e afectivos irreparáveis.
No tempo em que liam, os leitores obrigavam-se a jogos de
descodificação, entendimentos vocabulares, de conteúdo, de contexto, exercícios
de reflexão, uma ginástica complexa, que os mais velhos diziam ser saudável,
como também se dizia ser saudável caminhar e respirar o ar puro dos bosques
(quando havia árvores) estando hoje provado que não fazem falta nenhuma - os
livros e as caminhadas - e os homens vivem até aos cem anos para provarem isso
mesmo.
Erradicar a palavra escrita do convívio com os homens foi dos
maiores avanços na história da humanidade.
Eram seres inúteis e pedantes, durante milénios causaram desarmonia,
mal-entendidos, desavenças filiais. Eram incongruentes, contraditórias, dúbias.
Livres delas e vendo à distância, custa perceber como alguma vez
fizeram falta: arruaceiras, intriguistas, falsárias de significados vários.
Agora tem-se à mão uma colaboradora muito mais prestável. A
imagem, que nasceu nos subúrbios dos intelectuais mais humildes, e quando cresceu
em importância e ganhou só para si todo o espaço, engoliu os intelectuais.
É o suporte do conhecimento. Uma única imagem pode dizer tudo.
É claro que apesar dos avanços tecnológicos, ainda se pensa e
comunica com palavras, mas já não se escrevem a não ser nas resmas diárias de
ficheiros administrativos e burocráticos de repartições obscuras.
Estão portanto sob controlo, e mesmo que escapem algumas e vão a
despropósito tentar estragos, não conseguem. As pessoas perderam-lhe os
sinónimos, e não vislumbram já os seus sub-entendidos.
O indivíduo que inventou o chip
de descodificação automática das palavras foi um génio. Com os avanços da neuro-mecânica
generalizou-se à nascença a toda a humanidade a sua introdução no cérebro – assim
como o chip de identidade e o de
geo-localização.
Isto obvia a aprendizagem da leitura e os processos de compreensão
linguística, matérias que levavam anos de estudo. Funciona como um dicionário
imediato de significações e conceitos.
Uma das suas grandes vantagens deste chip é que antes havia uma quantidade enorme de gente estupida, que
não tinha acesso ao entendimento. Com isto, reduziu-se o número de estúpidos e
controlou-se igualmente o número de espertos que utilizavam as palavras –
porque as conheciam bem – para levar avante intenções elitistas não explicadas.
O conceptualismo e a abstração desapareceram e as artes
conseguiram respirar de alívio.
Terminaram as infindáveis discussões sobre as
fronteiras do piroso (kitsch).
Há uma geração que não pegamos num livro! Já não se produzem! e
não se sente a sua falta.
Já se esqueceu o mal que provocou, a infelicidade que causou, a
tristeza, a angústia, a raiva, que gerou. Libertarmo-nos das palavras e dos
livros, foi um salto da humanidade no caminho da felicidade sem perguntas, e um
homem sem dúvidas, olha sempre em frente até ao último dos seus dias.
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