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O DIVINO ESCORRE-ME PELAS PAREDES

Deus pinga-me do tecto e escorre pelas paredes, todos os dias às sete horas da manhã e à mesma hora da tarde.

Tem uma pontualidade que me deixa perplexo: como Deus, podia dar nota da sua presença a qualquer momento, sem se anunciar, mas não, é com o tempo marcado.

Nestas infiltrações no meu apartamento, jorram orações em ladainha, cânticos tristes espicham, sermões soturnos traçam riscos negros descendentes, todo um oceano que desagua na minha casa.

Para sermos rigorosos fazemos a correcção de que não é Deus que escorre pelas minhas paredes brancas. É um acólito seu. Esse padre anónimo (presume-se que seja padre) é a voz da missa transmitida na radiotelefonia.

Não se dando a ver a não ser ouvido pelo fenómeno do som - neste caso um som que pinga por paredes e tectos – podia ser mesmo Deus em pessoa que é assim que os milagres acontecem: estranhos e com um sentido de oportunidade muito próprio. Eu, pelo menos acredito na possibilidade de um milagre assim: palavras sonoras de Deus, transformadas neste caso não em vinho, mas em humidade que escorre.

Fosse de ir em crenças e no paranormal e estaria rendido, novo-cristão. Encartado de fé recentemente adquirida, transformaria a minha sala de estar num templo em sua honra, o altar da minha epifania privada. Iria partilhar com os vizinhos, espalhar a palavra, abrir portas para que peregrinassem na minha sala, e sentissem o arrepio do milagre, aquela energia sumarenta que se sente presente sem se apalpar.

Estou razoavelmente entretido nestas elucubrações, quando em inspiração de lucidez, realizo que este fenómeno não é mão do divino, mas somente os vizinhos do andar de cima, surdos e velhos mas muito crentes, ou tementes da morte que se aproxima, que põem o volume do radio no máximo.

Nos dias normais, às sete da madrugada confesso – mea culpa – que é difícil ouvir a palavra do Senhor. Estou quentinho e enrolado a viver uma aventura voadora, voador sem asas, senhor do mundo, ou então passo de imediato para uma sensação altamente estimulante balouçando-me num camelo, altíssimo, a mais de cinco metros da areia, cavalgando dunas imensas e douradas, na companhia de uma dama também ela loura e ainda mais estimulante que a sensação do camelo. Ser desperto por sermões de gosto duvidoso: pecado, perdição, purgatório, é bolorento, é lúgubre, abafa a qualquer um a vontade de se fazer ao dia que nasce.

Todos os dias, apetece-me calçar os pantufos, subir ao andar de cima, enviar a radiotelefonia para o espaço que medeia o segundo andar e o passeio e pôr os velhos de castigo: uma semana sem o anti-diurético, nem sequer o comprimido do colesterol.

Que me desculpe Deus Nosso Senhor, que não pretendo ser apóstata, mas a essa hora, tão cedo, quando ainda se sonha que se é herói, docemente enrolado ao edredon e a chupar no dedo, não é hora para alimentar sentimentos de culpa, aquebrantar uma pessoa na perdição eterna, acicatar crises de auto-estima.

Ao fim do dia na repetição do fenómeno das humidades místicas das sete da tarde, é mais provável que a epifania surta efeito: derreados da labuta, indispostos com as batalhas verbais e gestuais travadas no trânsito, amarfanhados pelas contas do mês, todo esse estado de espirito propícia a concatenação com o Senhor.

Infelizmente ou não, isso ainda não me aconteceu, mas estou seguro que a continuar com as infiltrações mais dia menos dia serei abençoado.

Até lá, o que eu gostava mesmo era de ter o tecto e as paredes limpas dessa humidade pingona. A manter-se o cenário, lá para o Verão vou ter que as pintar de novo. Casca de ovo, é uma cor que me apazigua.


Quanto aos vizinhos de cima, que se acautelem, com a compaixão que lhe tenho, estão-se a habilitar a níveis altos dos triglicéridos.



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