Fomos de passeio até Vale Viçoso ou Vila Viçosa, toponímia
alterada por D. Afonso III, há tanto tempo que se arquivou na gaveta dos dados
inúteis.
Tomámos essa decisão porque faz bem sair, ir a qualquer lado,
vagabundar sem reserva feita,nestes momentos de medos que atormentam as almas, em
que aumenta a temperatura dos desnortes, febrículas insidiosas que debilitam
corpos e afrouxam cabeças num adormecimento indolente, atarantados todos na
escolha de direcção nas encruzilhadas dos caminhos, sempre difíceis os
caminhos.
Cada um reage a seu modo: uns valem-se de amnésias propositadas
(aos esquecidos tudo se desculpa), vagueiam fora de si, como sempre fizeram -
por aqui e por ali - seguindo as correntes do momento; outros põem-se à procura
dos valores (não os do dinheiro, mas os do espírito), esquecidos nas gavetas,
perdidos nos labirintos interiores das suas casas, vagueiam dentro de si não
encontrando nada; há os que colocam perguntas, esperançados que o gorgorejo das
verbalizações sossegue a mente. Estes são vagos e consomem o tempo inutilmente.
Não há resposta para todas as perguntas, serão sempre mais numerosas.
Entornados nos pensamentos, na preocupação do mundo, fomos
arejar, para diluir as névoas peganhentas que se alapam insidiosas em nós.
Escolhemos o Sul, vamos terra adentro, às arrecuas do tempo,
prestar homenagens à Restauração. Não vamos de caleche o que é uma pena -
teríamos vistas mais desafogadas e lentidão para apreciar melhor - vamos de
carro.
Que não se espante D.João IV e a sua descendência, a ilustre casa
de Bragança, na viatura estranha que nos apresentamos: é do nosso tempo, e se
sua Majestade nos der o gosto, convidado está para uma voltinha.
No cardápio das palavras, o Alentejo cola bem com Luz, Branco, Paz.
Escolhemos todas, ficam bem na vestimenta da sua sensualidade, espreguiçada nas
volutas que imitam o recorte de ângulos belos, projecções mentais do feminino.
Rodovia-se portanto num
embalo pintado de terra, nas cores da estação do ano.
É nos locais, de tranquilidade extrema, que se afinam os ritmos
do coração. Aqui imaginamos um mar calmo que afinal é terra: serena, mel, como
as pessoas: serenas, simples, doces.
Hoje há menos homens, abalaram e deixaram os velhos e os
conformados. O interior – Portugal - é um deserto que se finge não ser, as
aldeias são marcos geodésicos a assinalarem o nada. Todo o interior está em suspenso
da decisão de um dia,em breve, se fechar a porta.
Fomos a Vila Viçosa para nos acalmarmos dos receios, das
inseguranças, da desprotecção, que vemos na televisão. Procuramos carregar a
bateria do positivo, no olhar da paisagem alentejana.
Antes de chegar ao destino patriótico, negocia-se um pretexto de
paragem em Estremoz, que também tem castelo, uma Pousada como deve ser, e o
restaurante “São Rosas”, experiência degustativa fundamental. E para que a
informação não fique como redutora, fotografámos o Teatro Bernardim Ribeiro, inaugurado
em 1922 com a Companhia Amélia Rey Colaço. Tem uma fachada de “Art Noveau rural”, criando assim uma
nova designação de estilo que nunca existiu senão na mente abusadora do
cronista.
Desta vez, com agenda curta para outros espraiamentos na cidade,
catrapiscou-se o olho à feira das Velharias – fraca porque chovia e ventava.
Não havia cacos mas encheram-se os sacos com produtos da terra: legumes,
frutas, queijos, enchidos, alimentos que se vêem muito mais bonitos exibidos no
terreiro, em pose blasé e
desorganizada, do que nas estantes claustrofóbicas das superfícies comerciais.
Aqui não há prateleiras privilegiadas, há agricultores que pesam
os produtos em balanças mal calibradas, o que não importa, logo as mãos
enrugadas e negras de remexer a terra, acrescentam mais uma maçã, ainda um
limão, numa honestidade que as balanças de supermercado não autorizam, sempre a
exigir peso certo para factura certa - que viaja instantaneamente (ainda
estamos a pôr as compras no saco) via cibernáutica para o fisco, que quer saber
com exactidão quantas bananas compramos todos os Sábados.
Ao pagar, não se fazem trocos de cêntimos, arredonda-se em
benefícios mútuos, do vendedor e do comprador, a melhor diplomacia da teoria
dos mercados.
Saímos contentes.
São pouco menos de vinte quilómetros. Longas fileiras de vinha, alternam
com amontoados de pedra mármore – fossemos excêntricos e víamos pirâmides – os
tesouros da região.
Vila Viçosa tem quatro mil habitantes, mas nos dois dias de
estadia, não se avistaram mais de vinte, trinta, para não exagerar. As pessoas
não saem à rua, onde andam? É assim em todas as localidades do interior, seja
Norte seja Sul.
A Pousada D.João IV ocupa o que foi o Convento das Chagas,
fundado em 1539, para albergar as irmãs Clarissas. Há quem diga – mexericos -
que foi um depósito da bastardia dos reis e dos príncipes, dados a desvarios e
fraquezas, não fossem eles humanos.
Ficámos na cela 119, com mordomias e confortos que elas não
terão tido. Mesmo assim, no novelo de um colchão envolvente com um dossel a
abater-se das alturas e a ver as notícias sujas do mundo num plasma panorâmico,
não deixámos de sentir um que outro arrepio místico.
Cirandou-se pelos antigos claustros, pelo jardim, as
fotografias, as selfie da praxe e
jantou-se.
Pediu-se lebre e galinha de fricassé. A primeira, se foi lebre e
selvagem e correu solta e livre pelos campos, no prato não se descobriu o que
tinha sido: até mesmo peixe. A outra, menos livre por natureza, ganhou o
apelido de fricassé, porque ficava bem na carta dos pratos do dia. Uma
desilusão que não foi barata e que beliscou a simpatia e profissionalismo, estes
num patamar muito acima dos rácios de gestão deste estabelecimento.
Estamos convencidos, que nos menús escritos à mão pelo rei
D.Carlos e aguarelados pelo mesmo, para os serviços aos seus convidados no iate
“Amélia”, emoldurados numa das salas do palácio ducal, os Frangãos assados,
terão sido frangos másculos absolutamente criados para serem saborosos à mesa
do Rei. Noutros tempos a palavra dada era outra.
O dia seguinte – as fatias douradas fizeram esquecer o desaire
da véspera – apresentou-se formalmente como a primeira manhã de Outono em modos
de aragem fresca e temperatura condizente. Quando até as estações do ano subtraem,
por serem narcísicas, o tempo certo das outras, ver a coragem desta a revindicar
o seu tempo foi estimulante. Andar em pleno Novembro de t-shirt e calções é uma
farsa, ofende os bons costumes.
O mármore cinzento da fachada do palácio ducal brinca às cores
com a brancura casta do Terreiro. Pede meças de santidade ao seminário da Arquidiocese
de Évora prantado face a face. Este conflito é mediado pelo bronze majestático
da estátua de D.João IV, no seu cavalo, estacionados no epicentro da praça. De
costas para o seminário, o castelo e a igreja de Nossa Senhora da Conceição,
padroeira de Portugal, rival da Nossa Senhora de Fátima, que sendo duas
senhoras, não argumentam publicamente. E para que não se desentendam aceitamos
ser filhos espirituais de duas mães, afinal dois apelidos da mesma entidade.
O Palácio Ducal abre portas às 9h30 nos fins-de-semana, com
visitas guiadas – duas da parte da manhã.Os ingressos são caros, mas a Fundação da Casa de Bragança não é
(é?) subsidiada pelo erário público e arear todos os cobres daquela cozinha,
consome dias, trabalho braçal que se supõe seja remunerado, a menos que
voluntário, e são muitos tachos e tachinhos para dar brilho!
Se se tiver o desejo cultural e patriótico de ver tudo: o
palácio, a biblioteca, as loiças, a armaria, os coches, o valor total da
entrada é o equivalente a um almoço supimpa nos “Cucos” (restaurante sem
pretensões arquitectónicas implantado na Mata Municipal). Faça cada um a
escolha entre umas magníficas migas, ou um pato estufado, e uma dose
concentrada de história em modo de sprint
pelas salas e corredores do palácio - belas sem dúvidas se nos tivessem dado
tempo para pousar os olhos.
Ainda assim o guia foi alentejanamente simpático.
O palácio tem um acervo simpático de pintura portuguesa, fica a
pena de muitos dos quadros estarem expostos nos corredores da criadagem,
corredores estreitos, de pouca luz. Não se podem apreciar porque mal se vêem e o
guia está apressado para o almoço.
Finda a visita na cozinha do palácio: setecentas peças de, dois
mil e quinhentos quilos, o maior “trem” de cozinha de cobre da Europa e graças
à Senhora, os meliantes ainda não descobriram este tesouro.
Ocasiões não são ocasiões, pagámos os ingressos e fomos almoçar
aos “Cucos”.
Despedimo-nos de Vila Viçosa oxigenados para encarar a realidade
contemporânea com olhos de esperança: amanhã podemos e voltaremos a ser livres,
dos jugos, das peçonhas, a nossa identidade não é o que posso ser agora, mas é isso
mais o que trago na minha mochila e num futuro voltarei a ser independente.
No regresso faz-se uma paragem técnica para um lanche de doçaria
em Arraiolos. Termina o dia na “bicha” da ponte 25 de Abril, que já foi de
Salazar mas independentemente do nome do dono é um prazer único, flutuamos
sobre Lisboa, ultrapassando a fronteira que liga o Sul ao Norte e entrarmos na
nossa cidade, felizmente pacata, segura, ainda afastada das imprudências
sanguinárias do mundo que está perigoso.
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