Estava todo farruscas. O cão assustou-se claro – os pelos
ficaram híspidos – e ladroou sem pedir autorização aos pulmões.
- Sou eu farrusco – disse o ti Manel.
O bicho reconheceu a voz do dono e acalmou o pranto. Quanto aos
preparos em que este se apresentava não chegaria lá sem explicações mais
convincentes. E ele era um canídeo inteligente.
O estouvado do pastor – dera-lhe para ali – cobria-se com uma
saca de serapilheira a fazer de casaca, cravejada a castanhas e nozes, com
apontamentos de folhas vermelhas. Enfiada na cabeça, uma carapuça da mesma cor.
Cada vez que ele meneava a cabeça, com um guizo a fazer de
berloque no carapuço - a dar e dar - a barba, já de si branca, soltava uma
espécie de poeira nívea.
O sacana (cogitações do cão) tinha a cara e as mãos chamuscadas
de preto. Preto?
- Farrusco, estou de Pai Natal.
O cão, que era o único indivíduo naquela casa que não se chegava
ao bagaço, compreendeu o personagem que o dono estava a encarnar. Agora em
preto, nunca tinha visto!
Como viviam num sítio ermo era possível que estivesse
desactualizado, e guardou essa estranheza só para si.
- Hoje é a noite mais bonita do ano.
- E vamos comemorar como manda a tradição: em família.
O cão que apesar de ter nascido na condição de cão, tinha o seu
tino próprio, ficou com dúvidas relativamente aquela afirmação.
A família eram os dois, não vislumbrava portanto motivos mais
fortes para que a noite fosse diferente de todas as outras que o ano desfia, já
que a companhia era sempre a mesma.
- É uma noite especial, em que a paz e a harmonia baixa ao
mundo, a noite do verdadeiro amor - o velho parecia uma filósofo.
A rotina desse dia foi a receita habitual: madrugar, pastar o
rebanho e os sonhos, e voltar para casa para a companhia do braseiro.
Foi tudo igual mas era possível que o dono, para estar com esta
conversa, tivesse abusado na dose do costume. Ou então, outros sentimentos que
desconhecia por ser um animal quase irracional,causavam aquela febre.
- Convidei o Zé da mula, que também está casado com a solidão,
para a janta. Este ano vai ser uma alegria nesta casa.
Agora que olhava melhor, o farrusco viu a casa diferente. Na
lareira - um de cada lado - pendurados dois peúgos velhos, com buracos e tudo.
A mesa estava posta – com garfos e tudo - e um coto de vela enfiado no gargalo
de uma garrafa bojuda e verde, a fazer de marco geodésico.
O Zé da mula vivia do outro lado da serra – mais de uma hora em
bom andar – e era um homem - como todos os solitários - contido nos discursos:
não lhes uso no dia a dia. Quanto a tudo o resto o Zé era igual a todos os
habitantes daqueles lugares: resistente e sorumbático.
Caído o pano da noite, veio acompanhado da dita. O farrusco foi
fazendo as honras da casa, rodeando e cheirando insistentemente a híbrida,
pondo-se a jeito aos humores instáveis da mula que era um ser de carácter
retorcido. Teve sorte porque ela também estava imbuída no espirito da data, e
não lhe passou “cartão”.
Ao Zé que via as coisas com uma espécie de nevoeiro permanente
em frente dos olhos, pelo que não era esquisito nas apreciações, não lhe passou
desapercebida a diferença e não deixou de comentar a indumentária excêntrica do
amigo:
- O Manel pareces o Baltazar, o rei mago.
- O Baltazar? Porque dizes isso?
- Porque estás disfarçado de preto.
- Então não sou o Pai Natal?
- E porque é que havias de ser o Pai Natal se estás pintado de
preto?
- Não era a cor dele?
- Não, essa era a cor do tal do Baltazar. E o Pai Natal não tem
nada a ver com essa história, é um gajo do Norte, enquanto o menino Jesus e os
personagens todos do presépio, viviam lá para baixo, no deserto.
- Estás a mofar comigo.
- Não estou nada. O pai Natal é um gajo gordo e tem um carro
puxado por renas e faz a entrega das prendas. O Jesus, nasceu numa manjedoura-
ou parecido – e recebeu a visita dos reis magos, o branco, o amarelo e o preto.
- Onde raio terei ido buscar essa ideia? Olha que se dane! O
Natal é como um homem quiser e eu quero que seja assim.
- Até ficas bem.
- Vamos mas limpar o canal para as rabas e o bacalhau.
- Boa ideia Manel, venha daí um brinde.
E começaram nisto, que não se sabe onde acaba, mas sendo dia de
festa é de esperar prolongamento.
O farrusco já habituado a ver o dono assim vestido, deixou-se
dormitar ao lado da lareira.
…
- Meu amigo, a comida está pronta, vamos jantar. Tu também
farrusco, hoje comes connosco.
- Ó Manel, o que é aquela caixa preta pousada no canto da mesa?
- É o meu neto
-O teu neto? Não o vejo.
- Mas vais ver.
O ti Manel serviu o bacalhau com as couves e as rabas, numa
pirâmide a extravasar dos pratos. Comeram calados como fazem as pessoas que
estão compenetradas na comida e não têm assunto.
Terminado o repasto, disse o Manel:
- Agora vamos falar com o Zézinho que está na França.
- Como se não tens telefone?
- Ele está dentro da caixa preta. Foi o meu filho António, que
me mandou pelo correio. Já experimentámos e funcionou. Levanta-se esta tampa,
carregamos neste botão e o catraio começa a palrar.
- E podemos fazer perguntas e tudo?
- Não, diz sempre a mesma coisa. Mas não faz mal, é bom na
mesma.
O Zé da mula desconfiou. Olhou para o cão deitado aos pés da mesa,
e este confirmou.
- Estou vestido assim para lhe fazer a surpresa. Os miúdos
acreditam nestas coisas.
Por magias que as há, ou outros mistérios por conhecer,
apareceu-lhes em cima da mesa um miúdo pleno de vida, aos pinotes e tropelias
num jardim enorme com uma estranha torre de ferro cheia de arrebites por cima
da sua cabecita.
Fartou-se de falar, e o avô, nas patetices sem sentido cheias de
sentimento, que quase todos os avós fazem para os netos, abanou o guizo
pendente do carapuço, soprou o pó branco das barbas, ensinou os enfeites na
saca de serapilheira.
Estava feliz, era uma grande noite de Natal.
O Zé da mula, perdido de família de pequeno, entrou na
brincadeira e divertiu-se à grande. Fartou-se de dizer adeus e desejar as Boas
festas.
O cão farrusco, não apanhou nada: estava estacionado nas
traseiras da máquina e só via um quadrado preto pelo que desistiu de ser
solidário.
Quando por artes a imagem desapareceu, os dois velhos
sentaram-se de novo e encheram um último copo de aguardente.
Depois disso o Manel ficou melancólico e ressonou. O Zé ficou
embriagado e ressonou.
No dia seguinte voltaram à sua vida. Tinha terminado o Natal
numa aldeia remota e deserta de gentes, num País de velhos resilientes.
Bom Natal!
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