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Mensagens

O SECRETÁRIO DE ESTADO

O secretário dormia, e até parece que ressonava um pouco, numa cadeira, espreguiçadeira. Numa pequena mesa ao seu lado, um copo com uma bebida que pode ser uma caipirinha. Porque não? O secretário passa “pelas brasas” e tem para além dos pés descalços, na areia, um livro que dá a sensação ser um romance, pousado, inerte, por abrir, no seu regaço adormecido. Enquanto ist o, num mundo que não é o seu, a classe que ele tutela, faz greve, já vez muitas, anda a fazer tantas. Ele não ouve esses ruídos incómodos, está na praia. As pequenas ondas do mar, apesar de pequenas e bonaçosas por ser verão, emitem ao darem o seu último suspiro na linha da areia, um ruido constante, muito relaxante, belo mesmo, e impede de se ouvir seja o que for. Muito menos se for um longínquo e meramente incomodativo esgar de gente imprópria, com interesses corporativos. Ah, as férias! Ausentamo-nos de tudo, carregamos baterias, a vida é madrasta o ano inteiro. O secretário balança agora

O SITIO DE MELIDES

Melides é frique, que bom, já há militantemente poucos. O hippie chique e a esquerda caviar são dois braços da mesma vibe mas não emitem aquele frisson de uma liberdade quase anárquica. Melides traça a linha da fronteira do litoral alentejano, a sul. A norte, veraneiam os intrinsecamente betos, os que juntam o tratamento blasé na forma como se dirigem às pessoas na pessoa do “você”, aos chinelos Vuitton, com os pés ligeiramente encardidos, às imensas pulseiras e colares sei lá, e que passam férias, em suas cottage de colmo e mirras, na Herdade das Herdades, a que já foi a mais do que tudo, que agora se desvanece em talhões cada vez mais pequenos, ainda assim caríssimos. Melides é frique mas vai deixar de o ser. Não é uma aldeia nem particularmente bonita, nem particularmente feia, nem tem (ainda) restaurantes particularmente dignos de estrelato. Mas tem restaurantes estrambóticos, inesperados, dados a excentricidades decorativas. Em vez de uma estátua de um ilustre co

OS ARES

Apanhava ar. No ângulo que fazia a esquina do murete que delimitava a casa, antiga, ainda com telhado de colmo, num barraco onde mal cabia ele, ali estava, velho, sentado num cadeirão de madeira, onde se percebia existir uma almofada, igualmente velha, que lhe ampara as costas. Diz-se apanhar o ar, porque é o que ele faz. Não está ali para ver ninguém – poucos, muito pouco se passa –, as vistas, nenhumas em especial. Está para arejar, isso mesmo, sair de casa, onde uma pessoa se pode encerrar, ir-se encafuando, distrair-se de si e do mundo, e nunca mais sair, encarquilhando lenta e inexoravelmente os movimentos, as vontades, o corpo, envelhecendo o espirito e despedindo-se da alma. Aquele cubículo, onde jamais caberia deitado, só mesmo sentado, tem uma porta, que está aberta, e ele, ocupando todo o espaço do espaço exíguo desse remendo de esquina de uma casa, é visto por este transeunte ocasional, visto pela metade (só se lhe vê a parte direita do corpo que areja, a out

AS RELAÇÕES DO SENHOR M. COM A.

O senhor M. esteve vinte e um anos fechado em  casa, por decisão própria - um bom apartamento -,de onde não saiu, nem para cumprir obrigações, coisas básicas, pagamentos. Aconteceu-lhe este fenómeno no dia em que foi a enterrar  o amor da sua vida. Não a enterrou verdadeiramente enterrada, no sentido de uma pessoa viva que o deixa de ser - e morre – sendo obrigatório fazer-lhe o funeral. Fê-lo no sentido figurado. Como o indica a lei e ele é homem de seguir os protocolos, encomendou as exéquias da descida à terra ou da subida aos céus (na direcção que se preferir), e a defunta, neste caso viva, seguiu o seu caminho. Ele, vestiu um luto que não abandonou mais. Uma vez vestido, é até aos dias que faltam cumprir, seguindo um hábito ainda recente, dos meridionais. Faziam-no mais as mulheres, imagens de fantasmas negro baço, algumas ainda na flor viçosa de uma idade por desabrochar, tão novas, azares da vida, maridos que morreram cedo demais. O facto de ter abdicado de

O PIANO

** Um piano tem  88  teclas,  brancas  e  pretas,  de  madeira.  As brancas são revestidas de  marfim  (já  não),  ou um  compósito  de  plástico,  nome técnico;  as  pretas,  de  ébano.  No  tempo  em  que  viveu  Mozart,  era  ao  contrário: as brancas eram pretas e estas brancas. Há pianos de cauda e verticais,  estes  mais  bonitos,  mas  pouco  práticos  de  arrumar.  São instrumentos caros. Há quem diga que são o instrumento musical mais completo,  aparte  a  voz  humana,  claro,  que  não  é  um  instrumento,  ou  então é, mas biológico. O   senhor   A.B.   gosta   de   tocar   piano,   de   ouvido,   e   na   realidade   gosta bastante, mas não tem um piano e nunca tocou a sério em nenhum. No entanto,   tem   dois   virtuais:   um   no   armazém   da   ourivesaria   onde   trabalha   e   o   outro   em   sua   casa,   mais   propriamente   na   casa   da   madrinha, onde   vive.   Diz-se   que   são   virtuais   porque   na   realidade   não   são pianos verdadeir