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NOTA DE ENXOVALHO

 ** Uma falta de asseio, um conspurco, um achincalho. Dito, é um chorrilho de impropérios que salpicam como perdigotos a quem se chega à frente. Escrito, é um palavreado duro cunhado a frio numa folha de papel. Talvez faça mais estrago porque ganha um prazo de validade maior. Se se pretende um enxovalho em privado – na intimidade dos dois – aconselhamos o envio de uma nota, pode ser de papel amarrotado, com uma frase sintética mas levada da breca, inteligentemente costurada, arrematada com as palavras certas, que podem ser uma arma de destruição maciça. Pode passar a nota pelo interstício da porta de casa de banho enquanto o outro se chuveira , sob a almofada da cama, dentro da tigela dos cereais, vazia, do pequeno almoço do dia seguinte. Atenção, esta prática deve ser sempre feita sem a necessidade de cair na deselegância. Pode-se enxovalhar com luvas de pelica e o ódio dá-se muito bem com frases curtas. Há quem em desespero, se socorra da técnica das agulhas

PERDEU TODAS AS IDEIAS

PORQUE NÃO SOU ADVOGADO

Os meus pais sonharam tanto com um filho jurisconsulto, para eles advogado, mas escapei-me e desiludi-os num dos seus sonhos de pais: a profissão dos filhos.   Que nem sempre acerta, depois, nos sonhos que os filhos escolhem. Fugi para casa de uns primos afastados, gente honesta, se tivesse sido advogado também, que tinha um negócio de venda de bifanas, actividade itinerante, numa rulote, na Alsácia. Tornei-me vendedor ambulante, sem nunca ter imaginado que na Alsácia as pessoas gostavam de bifanas no pão. Encontrei o meu caminho e sou feliz desde aí, mesmo pagando impostos. Sempre que o meu negócio permite, recebem-me, os meus pais, quando venho no verão matar saudades (já me custa entender o significado de algumas expressões. Eu não venho matar nada: venho viver). Venho então recuperar momentos da minha ausência,   da terra. Eles não são espontâneos, os meus pais,   no fundo nunca me perdoaram ter-lhes falhado no sonho, deles.. Não foi por não ter sido doutor, mas

ABRAÇO-TE-ME

Estendes os braços nus, finos, oferecem-se assim amplos, pedintes. São provocadores, não são provocadores, são absolutamente meus, espero, esses braços, com a sua intenção honesta de me abraçar, só a mim, e porque estão nus e são finos, levo a intenção ainda mais a sério. Mas não. A tua intenção nesse jogo subtil de se pensar que é uma oferta, é afinal que seja eu a abraçar-te quando chego à distância de o conseguir, estendendo os meus braços menos finos e menos femininos, mas igualmente só teus. Com a melhor das simples resoluções, faço-o sem considerações filosóficas, nem mesquinhas, o amor não faz considerações. Então, perco-as se dúvidas tivesse, ponho para trás algum receio, e avanço, chego-me, um aproximar dos tímidos. Tudo isto foi um virar de segundo, abraçamo-nos, e não temos palavras encadeadas e suficientes para explicar com clareza o que aconteceu aos outros por não se terem abraçado, nós sim, sabemos bem o que nos aconteceu, não estamos interes

TRAIÇÃO

Torneaste-me com outra. Galanteador, cínico de meia-tigela. Não mereces o cálcio que assimilas. Contigo, o sol anda a perder tempo. Acercaste-te  com mansidão, eu longe de estar necessitada, com a ocupação mais que suficiente de estar a encarreirar a minha vida para a frente, e tu, hipócrita armado em  peluche fofo, a abeirares-te  pedindo mimos. Eu a dar-tos, parva! Não consigo ver um sofrimento (mesmo que fingido) e vou logo embalar o mundo! Fui nos teus versos e foi no que deu: traída por um smartphone! Não foi o hediondo tablete que me traiu, foi ter visto nele a combinação imunda de um encontro carnal com uma outra que não eu, quando era o tempo de ter sido eu. És um polígamo com halitose! Defeito duplo. Não vales as cuecas esgaçadas que vestes. Vai-te!  Some-te de mim! Digo-te hoje pela primeira e definitiva vez – estava atravessado - que desde o dia que te conheço que acho ridículas essas orelhas que tens. Vais ver quando fores velho e elas descaíre

BEIJO

* O rigor matemático que se exige num beijo para se atingir os mesmos níveis de emoção de um míssil que alcança a estratosfera enquanto o diabo esfrega um olho, obriga a capacidade diferenciada, um talento, diga-se: ser aluno de vinte nas matemáticas dos beijos bem dados, numa capacitação para  aguentar sem falência cardíaca fulminante o impacto do amor, comparado que é este com a projecção a uma velocidade vertiginosa de um projéctil na direcção desembestada do fim do mundo, nome que alguns dão ao infinito do espaço sideral. Reunidas as condições, um bom beijo é quase a melhor coisa do mundo, pode mesmo ser a melhor. Depois destes preâmbulos, como engenheiro   aeronáutico do amor, que sou, aqui vai um míssil, que nem louco. Um beijo para ti, outro, dá-me tu um, vá... ** *Jean-Léon Gérôme - "Pygmalion and Galatea" ** Nicole Eisenman - "Sloppy Bar Room Kiss"

CARTA DE IRMÃOS DESAVINDOS

* “Meu irmão, como te vai passando o tempo? Estimo que bem, na companhia de quem mais amas.  Estranharás receber uma carta, minha, quando já não se usa escrever. Não sei mesmo se ainda haverá selos, para a pôr numa caixa de correio e chegar até ti. Escrevo-te uma carta porque acredito que entre o seu envio, a sua boa recepção e a resposta que depois se espera, gera-se uma bolsa de tempo que admite o arrefecimento e a ponderação do sentimento, o que dá a possibilidade à razão de corresponder de forma apropriada. Oferece-se um tempo extra para levedar a resposta, e o que dai sair é com certeza mais sensato. A vida tem destas coisas, afastamo-nos sem razões nem motivos, e vamo-nos afastando sem razões nem motivos, e quando damos conta – agora – já estamos longe, perdemos o pé. Numa situação destas a que nunca deveríamos chegar, não se sabe  o que dizer para reiniciar a conversa interrompida, num tempo esgotado em que nos perdemos um do outro.. Se  aceitarmos alguma humi