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Mensagens

AZUL DE MAIO

Acordo e ausento-me de um sonho.   Desperto, vou continuar a olhar para o céu, que ainda falta azul para pintar uma das paredes de mim.

A ARTE DE ENCADERNAR

Uma história repetida vezes sem conta que parece o desfiar de um rosário. Veio para cidade, de uma aldeia perdida no nome e no conhecimento das pessoas, menos as poucas que lá viviam pobremente. Currelos, Viseu. Veio servir, mas não quis. Foi trabalhar aos doze anos para uma oficina em Campo de Ourique, a desmanchar livros, é assim que começa o ofício. Como era curiosa aprendeu a arte de encadernar. Aos dezassete anos comprou o negócio. Quinhentos escudos.  Viveu tempos difíceis, menos difíceis, são sempre difíceis. Agora que poucos apreciam os livros de os ler e de os afagar, porque vive de uma pensão de viuvez, trabalha a dias, e alguns desses dias, poucos e que deviam ser todos, ainda consegue exercer a sua arte, mas gostaria de o fazer a tempo inteiro, já não dá. Anos atrás, num dia em que provavelmente boleava um livro, entretida com os sons da radio, entrou-lhe porta adentro um senhor estrangeiro. Italiano e engenheiro de Cabora Bassa. Veio encomendar um liv

DESCUIDADOS DE DEUS - DIA FINAL

Ficou o mundo num alvoroço, todos reclamavam. Uns porque queriam mais, outros porque queriam tudo, outros porque queriam ser deuses acima de tudo. Também havia os que apontavam o dedo, incriminando de todas as culpas os homens, por serem os criadores de deus. Neste grupo  estavam representadas as outras espécies e famílias do reino animal - que já foram faladas e outras - e havia mesmo uma ou outra flor, que apesar de que se saiba serem falhas de inteligência, algumas são de uma beleza tal e de perfumes tão indizíveis por palavras, que sendo como são só podem ter sido criadas para serem admiradas como verdadeiras deusas, pelo que encaixam no teor que se está aqui a tratar. A manhã estava orvalhada e ainda fresca, mas prometia um dia despejado. Era um inicio de dia em que os raios de sol entravam pelas frechas dos estores dos quartos e se intrometiam debaixo dos lençóis, puxando a roupa de cama e obrigando os renitentes a levantarem-se. Há alguns dias assim, principalmente n

O DIA

Hoje é o dia, u ma comemoração, u ma memória A história de um acontecimento q ue alguém contou, ou se leu algures. Os da memória lembram-se muito bem,o s da história contada, acham piada ou u ma informação inútil. O que é pena. Nesse dia, que é hoje o dia, Pariu-se a criação do futuro,o futuro dos contemporâneos que agora d esvalorizam a data. Se não tivesse existido o dia, hoje, n ão andariam as flausinas livres, p elos passeios a dizerem tudo. Tudo, sem silenciamentos. A efeméride que se comemora, é do deslaçar dos laços e das mordaças, m as parece q ue não se anda a perceber. Muitos andam numa morrinha permanente e desleixada da consciência, Afastados desse dia substancial

CRAVOS, A MULHER QUE LÊ LIVROS, AS UTOPIAS

Voltei ao jardim, o mesmo, que é, ou era porque já foi, frequentado pela mulher que lia livros. Não a vi, é normal, ainda estamos a sair do inverno e a  esplanada está inoperacional, desmantelada. Neste paįs, num jardim sem uma esplanada minimamente operacional, ninguém lê livros no inverno. Fica um jardim sem condições. A tendência é para fazer mais sol (ele faz sempre a mesma quantidade, mas é um dizer), o calor vai aumentar e pode-se esperar que chova muito menos ou mesmo nada. O jardim poderá voltar a reunir condições para as pessoas que leem livros, incluindo a mulher que lia livros – e não se sabe se desistiu – espera-se que continue, o que seria uma perda considerável para a harmonia deste jardim. Equivoquei-me.  Dirigindo-me para a saída do jardim visto este ser contido por um muro que o separa do asfalto e dos prédios e ter uma porta de entrada e a mesma para a saída, vi-a. Estava a ler um livro, imersa, que nem deu por mim. Como poderia ter dado por mi

DESCUIDADOS DE DEUS - O DESPERTAR DA REVOLTA

Toda uma vida a imitá-los, a chamar a atenção, a pedir reconhecimento. Fãs incondicionais, queriam tanto ser iguais a eles, como eles. Tivessem os símios necessidade de um Deus mais próximo, o homem era o seu Deus. Mas não têm, porque são quase homens e reconhecem o mesmo Deus. O que não podem é perdoar, um perdão duplo aos homens e a Deus. Aos primeiros por não os reconhecerem como iguais, ao segundo por não lhes ter dado o pequeno pouco em falta para terem sido como os humanos, ainda assim falhos de perfeição. E nem um olhar de simpatia, só gozo, divertimento. Aquelas crianças que agora os macaqueiam do outro lado do vidro, imitam os pais, que já nem sequer os macaqueiam, ignoram-nos. Eles conformaram-se, sabem que nunca se sentarão na mesma mesa para conversar, nem confraternizar igualdades. Sabendo isso, deixaram de reagir, de olhar para o outro lado do muro transparente, de comunicar o impossível separados por uma espessura de vidro que não deixa passar nenhuma comunica

COMO ANDAM OS DIAS

12 de Abril de 2018 Começou um dia cinzento, breu, chuvoso, desagradável, mal-educado. Haverá outras partes do mundo onde faz calor e o céu está claro. Aqui não. Aqui as pessoas tentam proteger-se da intempérie. Fogem, correm, escondem-se em recantos onde fiquem abrigadas. Não estão bem, as pessoas. Para além de uma humidade forasteira, paira algo mais, não se sabe o quê, sente-se e não é bom. O tempo tem vindo a piorar e não se esperava isso. Devia ser ao contrário: desanuviar-se, preparando a entrada da primavera, que habitualmente traz de melhor, tudo de melhor   que o mundo tem para oferecer a si mesmo: cor, alegria, entusiamo, abundância. Mas não, está pifo. A continuar assim, as pessoas que já andam gastas, começam a assustar-se receando que lhes caia o mundo em cima. Ficam supersticiosas, desconfiadas, olham de viés. Como se pode alguém precatar da tempestade, quando ela se abate sem aviso, cobardemente, não por natureza sua, mas porque a natureza não