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Mensagens

AMARRAS

  ** Um prisioneiro com algemas invisíveis. Na casa que comprou, a pagá-la toda a vida, um calvário. Agora, a casa a fazer-lhe uma destas. Asfixiava. Tinha a chave da porta, podia sair, podia entrar. O que importa isso se tinha uma barreira moral. Sim, moral. Não saia pelos outros e por si. Os outros também o deixaram de visitar. Seria por eles e por si. Uma confusão e um dilema. Aquela casa que nem sequer estava bem localizada, nem era particularmente confortável, que lhe custou uma verdadeira fortuna, era melhor nem fazer as somas todas, emparedou-o na fase da sua vida em que ele estava a sentir-se melhor no exercício muito difícil de alimentar uma boa conversa. Anos investidos nisso, aprimorar e limar arestas e agora que se sentia um tribuno, gostando de se ouvir, não tinha com quem falar. Para as paredes que não lhe respondiam, ingratas, o que ele investiu nelas. Tinha uma colecção antes feita de selos. Pôs-se a escrever postais. Todos os dias depositava-os num marco do correio, em

O VOO

  Por sortes ou azares, ou coincidências, ou simplesmente porque foi assim, ele cresceu a deliciar-se com o voo picado dos falcões peregrinos. Como em pequeno tudo se imita, imitou o voo destes, alucinadamente letal. Tanto praticou que conseguiu uma imitação aproximada. Os falcões ficaram curiosos, depois omitiram porque tinham mais que fazer, que é procurar a continuação da sua vida na morte dos outros. Caçando portanto. Ele é um Abelharuco, pássaro lindíssimo mas humilde no tamanho. Convenceu-se que era uma ave de rapina mas nem sequer come carne, é completamente vegetariano. Os seus perdoam-lhe. Quem nos ama perdoa tudo. Foi fruto do encadeado de acontecimentos que lhe sopraram a vida. Não se pode ser tudo o que se quer ser mas há quem se convença do contrário

Contos pequeníssimos - DECISÕES PESSOAIS

  Numa noite que se antecipou ao final do dia, prometendo medos, ele saiu de casa, bateu com a porta porque era uma acção simbólica. Nunca mais voltou. Saiu com as mãos nos bolsos, foi visto assim, como se fosse desinteressado. Seguiu caminho, não olhou para trás uma única vez. Antes de sair teve a sua conversa definitiva e clara com o passado. Disse-lhe nos olhos que ia pelo futuro. O passado nem esboçou detê-lo nessa decisão, compreendia. Para ele não havia futuro se não se livrasse do passado. Há de tudo. Há quem leve a poeira aos ombros, há quem vá desanuviado. O que seria este homem se tivesse ficado. Nunca o saberemos. Entretanto, na direcção oposta, um outro homem, vindo esbaforido parece que do seu futuro, retrocede a correr, desalmado homem, confiante de que o passado ainda esteja á sua espera. Esteja ou não, vai lesto. É no movimento que está a vida.

DIA CINZENTO

  Dá-me a mão. Que bom. Falta isso, dar as mãos. Passearmos pelos jardins o desassossego das nossas inquietudes.  A tua e a minha mão, enamoradas, uma só, a aliança do amor. Por essa razão inequívoca, devemos entrelaçá-las com a força sobre-humana, que humanamente somos. Porque sim, é amor. A união mais poderosa que jamais conseguiremos: duas mãos dadas. Assim, ficamos senhores da realização plena do amor nos instantes efémeros em que apertamos, com a mesma intenção, a tua, a minha mão, os melhores momentos de os passarmos juntos, amor que  não sei como o saberes por mim, senão dar-te fortemente a mão, oferecendo-te a minha.

REENCONTRO

  No afã de nos vermos que era uma ocasião usufruída e gostosa; no sufoco dos abraços, beijos, conexões do meu corpo com o teu e do teu com o meu, vontade correspondida;   na urgência que tínhamos definida de lançarmos palavras redondas e doces um ao outro; na necessidade, sim isso mesmo, de marcarmos para o reencontro, hora certa em todos os momentos que nos eram possíveis; em toda essa maré cheia de sensações, arremessos de amor e desejo; tatuagens pigmentadas em tons fortes nas nossas almas, cicerones de nós; em toda esta maré alterada em que nos encontramos, não deixaremos de desfiar o fio de Ariadne, que nos guiará um ao outro, no momento em que esta tempestade incongruente passar, e num céu novamente rasgado, como se fosse o primeiro céu do mundo, e na amplitude de todas as possibilidades, assistiremos ao nosso reencontro, embevecidos e apaixonados, como se nos tivéssemos a ver pela primeira vez. E estaremos.

CARTÓGRAFO DO DESCONHECIDO

  Despertou cedo, foi passear. Vestiu roupa simples e cómoda, calçou umas sapatilhas afeiçoadas aos pés, fechou a porta delicadamente para não incomodar os objectos que repousavam na réstia silenciosa de noite que ainda fazia escuro. Quando fechou a porta de casa e deixou para trás a do prédio, alisou-se à sua frente uma passadeira vermelha, imaginária, ou talvez real. Encheu-se pleno de si, o pé direito fez o primeiro gesto, andou, um passo, desafiou o parceiro do lado. Estava um tempo agradável, nem frio nem calor, ideal para grandes caminhadas. Ciciava uma aragem apenas detectável, propicia. Os primeiros passos, comedidos e lentos, estimulados pela perspectiva de um excelente passeio, cedo se ficaram afoitos. Aumentaram o ritmo. Assim foi andando. O caminho que ele não escolheu, foi escolhido, apresentou-lhe novas possibilidades, escolhas, inúmeras ramificações oferecidas, como árvore desenhada no chão, e ele confiante, aceitou, decidindo naturalmente a direcção das encruz

FUNCIONÁRIA PÚBLICA EXEMPLAR

  É uma só pasta, das grandes, a lombada. Suporta muitas folhas, centenas talvez, também separadores. Agora são precisamente nove horas e quarenta minutos, de um dia de semana. Às nove horas e dez minutos, arredondando, um ligeiríssimo atraso que não se dá conta, ela entra no edifício e cumprimenta a menina Albertina. Na sua carreira fidelíssima ao Estado, a menina Albertina conheceu dois postos de trabalho: Porteira e Assistente Operacional de Recepção. Veio trabalhar para o Instituto, uma gaiata, com tranças e laçarotes e tudo. O seu pai fazia uns favores ao Senhor Doutor. Informações e isso. Pediu-lhe emprego para a filha e este aceitou-a. Uma mais no meio de tantas afilhadas que tinha. Praticar o Bem, o que ele fazia. Albertina perdeu as tranças com laçarotes, endureceu de feições e não casou. Tendo a escassa família vindo a desaparecer por causa naturais e pela lei da vida e das precedências, ficou sozinha. O Instituto é a sua família. Falam as duas sobre coisas do quotidiano,