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SOFÁ

  Nos cenários do impossível, tudo é possível. Existe, não existe. Foca, desfoca. Inventa-se. Cria-se. Estou sentado no velho sofá companheiro de inúmeras aventuras e descobrimentos. Juntos participamos felicidades e tristezas. Meu confidente, onde sonhei futuros, tricotei ilusões, ancorei catadupas de pensamentos uns estéreis outros não, tomei decisões, umas boas outras poderiam ser melhores, foram as melhores que tomei. Estou envolto nele a deambular nestas coisas e dá-me vontade de atravessar o estreito de Magalhães. Cá vamos nós, o sofá nunca se recusa! Saio do meu conforto sem sair, vou eu e ele directamente para tempestades que metem medo, vendavais de levantar as fundações das casas e dos seres,  e outras intempéries, imerso na leitura de um livro de um chileno que  escreveu sobre os mares do fim do mundo, terras setentrionais, de gentes poucas, duras, solitárias. Num piscar de segundo, sou marinheiro, faço parte do livro, mais, vivo dentro do livro, personagem novo. Estou n

O HOMEM QUE NÃO QUERIA NASCER

Em tudo era parecido com a vida. Na realidade, era a vida, também é assim. Não via senão o escuro, mas o escuro é o não ver. Faltava-lhe esse sentido para ser pleno de todos, e por isso dizia viver parecido com a vida. Mas não. Vivia. No conforto de um embalo, constante, quase ritmado e ouvia sons afastados, ainda não palavras mas eram palavras e ele não sabia. Não as tinha aprendido. Ouvia o que se dizia fora do escuro, e fora do escuro estava o mistério, para lá das paredes de matéria flexível e desconhecida que o envolvia, como um casulo. Uma gruta. Gostava dos sons assim como gostava dos sons que eram música, e mais uma vez, como não sabia, não os identificava com um nome, mas gostava. De todos, o som que mais ouvia, repetido inúmeras infinitas vezes era “filho”. Um chamamento longínquo, uma espécie de sussurro. Não o sabia, mas era de todos o que mais gostava de ouvir, e descansava, protegido, descansava profundamente e bem e feliz e satisfeito. As suas mãos, os seus dedos, numa

MANUAL DOS SOLITÁRIOS

  -  Anda Farrusco, vamos acordar as ovelhas . O cão, enorme, abentesma naquela quase escuridão,  do tamanho de um homem bem medido, nem se mexeu. Ou antes, entreabriu o olho direito, o que estava mais próximo do dono e olhou-o desinteressadamente. Voltou à posição estática, de estátua marmórea. A modorra das cinzas ainda quentes, espalhadas na lareira, a parecerem larvas incandescentes de um vulcão apagado – que faz as funções de fogão – meio mortiças, mal aqueciam o casebre de pedra granítica, tipologia daqueles lugares. Ficar esquecido o mais que pudesse, era intenção do animal. Todos os dias pensava nisto, e nunca se realizava essa ambição. Um cão pastor não tem domingos nem folgas. Uma enxerga, que com muito boa vontade poderá imaginar-se cama, uma mesa bamba, um par de cadeiras, um escano junto ao lugar do fogo e um pouco mais de nadas, são os adereços de cena. Não há candeeiros, só lâmpadas cheias, envoltas de pó, às camadas, tantas que fazem vezes de  abajures. No