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PARAÍSO? SEMPRE EM FRENTE, ALENTEJO.

«C`um caneco», diz a rã a coaxar, saltando em esforço sobre o alcatrão escaldante da estradeca. Até que chegue ao outro lado, bem tem que vociferar. Uma lontra, aos seus afazeres, caminhando nos vagares da região, investida de toda a calma do mundo – pressas para quê, se vamos todos morrer. A lontra passa diante de nós, quatro, cinco metros, omite-nos, a curiosidade dela não é mútua. Uma águia-calçada, ou pequena, ainda assim águia, descreve círculos, planando. Espera pela sua oportunidade e não vai falhar. Não é comum ver uma rã – na cidade –, águias só domesticadas, tristes figuras em estádios, lontras é mesmo impossível. Quem diz rã, águia e lontra, diz coelhos, são muitos. Assustadiços, disfarçam-se com a nossa presença de coelhos-pedra, congelados, estátuas, e quando não aguentam mais, porque os coelhos são de natureza inquieta, dão grandes saltos disparando em velocidade furiosa a esconderem-se nos silvados. Há também cobras, que não se desviam da rota, presumidas, se

A REDUNDÂNCIA DO TEMPO

Passaram dez anos desde que se suspendeu a contagem do tempo. O tempo deixou de ter sentido. O futuro perdeu todo o interesse, previsível, aborrecido, para quê continuar a contar o tempo se ele não nos leva a lado nenhum. Fechámo-nos, todos os que podemos, em casa. Os que andam na rua, são os novos escravos. Os que têm que estar na rua para que isto continue. Muitos deles pagam com a vida, pagam com a subtracção dela, mas não têm escolha. Eles morrem para que nós, os que estamos em casa, continuemos a viver. Num tédio destes, para quê continuar a contar o tempo. Não vale a pena. Este mês seria o mês dos santos que o povo gosta, mas com a peste, todos os santos fugiram. Foram para o paraíso, onde estão seguros, protegidos de nós. São momentos assim que nos dão a ver o que antes não víamos: a importância de algumas coisas, a redundância de outras. Sem santos, a sardinha deixou de fazer sentido, é um peixe como qualquer outro. Os manjericos são inúteis. As noivas e os noivos passaram

SEXAGENÁRIO

Era miúdo e o mundo era todo muito grande, enorme, de dimensões desproporcionadas à minha pequenez, e o meu avô - só para nomear esse exemplo - tinha sessenta anos e eu considerava-o terminado e velho. Dava-lhe a mão, íamos passear pelas ruas e eu dava-lhe a mão com toda a pouca força que tinha, para o proteger de uma queda ou um acidente, porque era velho e fraco e eu pensava nisso, enquanto passeávamos, e tinha pena. De mim e dele que o ía perder mais tarde ou mais cedo (quarenta anos depois…). Frequentámos muitos jardins depois disso. Hoje cumpro essa idade e não me sinto velho, nem estou nada pronto para encarar a oferta de uma morada eterna e definitiva, a menos que seja por obrigação. Tenho sonhos, muitos sonhos, planos, tantas utopias, continuo a ser um menino. Vejo-me dessa forma, e gosto. O que pensará de mim o meu sobrinho Óscar, quando afaga a minha barba a caminho de ser branca, quando me dá a mão (as mãos não mentem), e eu reparo que ele repara com curiosidade que as

SOFÁ

  Nos cenários do impossível, tudo é possível. Existe, não existe. Foca, desfoca. Inventa-se. Cria-se. Estou sentado no velho sofá companheiro de inúmeras aventuras e descobrimentos. Juntos participamos felicidades e tristezas. Meu confidente, onde sonhei futuros, tricotei ilusões, ancorei catadupas de pensamentos uns estéreis outros não, tomei decisões, umas boas outras poderiam ser melhores, foram as melhores que tomei. Estou envolto nele a deambular nestas coisas e dá-me vontade de atravessar o estreito de Magalhães. Cá vamos nós, o sofá nunca se recusa! Saio do meu conforto sem sair, vou eu e ele directamente para tempestades que metem medo, vendavais de levantar as fundações das casas e dos seres,  e outras intempéries, imerso na leitura de um livro de um chileno que  escreveu sobre os mares do fim do mundo, terras setentrionais, de gentes poucas, duras, solitárias. Num piscar de segundo, sou marinheiro, faço parte do livro, mais, vivo dentro do livro, personagem novo. Estou n

O HOMEM QUE NÃO QUERIA NASCER

Em tudo era parecido com a vida. Na realidade, era a vida, também é assim. Não via senão o escuro, mas o escuro é o não ver. Faltava-lhe esse sentido para ser pleno de todos, e por isso dizia viver parecido com a vida. Mas não. Vivia. No conforto de um embalo, constante, quase ritmado e ouvia sons afastados, ainda não palavras mas eram palavras e ele não sabia. Não as tinha aprendido. Ouvia o que se dizia fora do escuro, e fora do escuro estava o mistério, para lá das paredes de matéria flexível e desconhecida que o envolvia, como um casulo. Uma gruta. Gostava dos sons assim como gostava dos sons que eram música, e mais uma vez, como não sabia, não os identificava com um nome, mas gostava. De todos, o som que mais ouvia, repetido inúmeras infinitas vezes era “filho”. Um chamamento longínquo, uma espécie de sussurro. Não o sabia, mas era de todos o que mais gostava de ouvir, e descansava, protegido, descansava profundamente e bem e feliz e satisfeito. As suas mãos, os seus dedos, numa

MANUAL DOS SOLITÁRIOS

  -  Anda Farrusco, vamos acordar as ovelhas . O cão, enorme, abentesma naquela quase escuridão,  do tamanho de um homem bem medido, nem se mexeu. Ou antes, entreabriu o olho direito, o que estava mais próximo do dono e olhou-o desinteressadamente. Voltou à posição estática, de estátua marmórea. A modorra das cinzas ainda quentes, espalhadas na lareira, a parecerem larvas incandescentes de um vulcão apagado – que faz as funções de fogão – meio mortiças, mal aqueciam o casebre de pedra granítica, tipologia daqueles lugares. Ficar esquecido o mais que pudesse, era intenção do animal. Todos os dias pensava nisto, e nunca se realizava essa ambição. Um cão pastor não tem domingos nem folgas. Uma enxerga, que com muito boa vontade poderá imaginar-se cama, uma mesa bamba, um par de cadeiras, um escano junto ao lugar do fogo e um pouco mais de nadas, são os adereços de cena. Não há candeeiros, só lâmpadas cheias, envoltas de pó, às camadas, tantas que fazem vezes de  abajures. No