Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

Comentador de assuntos vãos

Àquela hora, todos os indícios prometem uma boa manhã: o papagaio do vizinho já se debate com questões linguísticas, as gaivotas estão histéricas, o sol ainda mal abriu os olhos e os seus raios varrem horizontalmente os objectos e os seres, vestindo-os de contraluz. Vai se aperaltar um grande dia de verão! O vento recolhido no lar, deixa o ar abafado e quente , Jacinto acordou nesta algazarra sensorial, mas permaneceu, tomando-se com vagar senhor dos automatismos vitais - agora sob o seu controlo - protegido pelos lençóis de fina cambraia. Aguarda pelo noticiário das seis na Antena 1, espera que a voz da rádio o ponha ao corrente do pulsar, ou estertor, do mundo. Uma canção de combate, das antigas e boas, aviva resíduos dos tempos em que ainda existiam ideologias e causas, tem um arrepio momentâneo de nostalgia pé de galinha e enterra a cabeça grisalha, na almofada ortopédica. Espera-o um longo dia de trabalho, como comentador de assuntos vãos, opinador do i

A bandeira degolada

Dizemo-nos com símbolos: as palavras são, a iconografia é, pessoas que simbolizam conceitos vivos para o colectivo, expressões de identificação e entendimento, plasmam a identidade da tribo. Todos este s símbolos são os veículos e meios de expressão pelos quais, munidos de uma liberdade total, comunicamos com o mundo. São os códigos que dispomos para nos entendermos, desentendermos, coexistir, de preferência harmoniosamente, em sociedade. Não nos exprimimos  sem liberdade de expressão, o que não quer dizer que não possamos – que podemos  mas a decência não devia deixar - veícular as nossas ideias usando uma qualquer estapafúrdia ou violentadora forma de dizer, rebaixando o outro com  golpes de violência verbal, gestual ou mesmo física. Se usarmos esses subterfúgios de jogador de  Poker  somos menos livres porque aprisionamos os incautos nas armadilhas do nosso suposto poder. E não há pior poder que negar a palavra do outro. Os homens necessitam de símbolo

Leprosos

A cidade bule, impiedosa como todas as urbes, não por maldade própria, mas pela inerência normal da imensidão de pessoas difusas, cada um nos seus afazeres do dia. Numa intersecção de vias rodoviárias, ruas movimentadas, pontes de circulação pedonal, viadutos por cima e por baixo, existe uma aldeia de casas de cartão e materiais efémeros. Não se sabe se esta aldeia tem um nome, deveria ter. A toponímia legaliza a geografia. Nessa aldeia de papel, vivem pessoas, como em todas as aldeias. Habitada por seres primitivos – palavra difícil de entender e de mal entendidos – no entanto humanos. Os cidadãos atarefados da urbe, fingem que não os veem: envergonham o seu olhar. Outros e muitos, desprezam a insistência de um copo preso numa mão estendida. Os seres deste aglomerado em cartolina, quase primevos, ainda assim humanos, vieram de terras desconhecidas, mal afamadas pelo desconhecimento. Não se imagina como conseguiram chegar - nem se perde tempo c

Cartógrafo do desconhecido

Despertou cedo, foi passear. Vestiu roupa simples e cómoda, calçou umas sapatilhas afeiçoadas aos pés, fechou a porta delicadamente para não incomodar os objectos que ainda dormiam. Alisou-se uma passadeira vermelha. Pleno de si, O pé direito fez o primeiro gesto, desafiou o parceiro do lado. Estava um tempo agradável, nem frio nem calor, ideal para grandes caminhadas. Ciciava uma aragem apenas detectável, os primeiros passos, comedidos e lentos, estimulados pela perspectiva de um excelente passeio, cedo se ficaram afoitos. Assim foi andando. No fim da passadeira, apresentaram-se novas possibilidades, primeiras escolhas, inúmeras ramificações oferecidas, como árvore desenhada no chão, e ele confiante, aceitou. Seguiu sem definição de rumos, deambulou inchado de inocência. A companhia acolhedora do sol lampejante e os sons espontâneos da natureza, aligeiraram o seu pensamento. Leve, deu passos mais longos, ganhou distâncias, afastou-s

O meu Iphone nunca funcionou

Joga-se ao tostão, cara a cara, o momento da vida, no hospital das bonecas. Mecanismos, luzes fortes, sons estridentes anunciam a expectativa sem uma resposta definitiva que nos descanse. A continuação da vida em modo suspenso. Esperança pelo sim. Que não nos toque o mau som, que não se apague a nossa luz, que as linhas da máquina continuem histéricas, para cima e para baixo. Bom sinal. Desta vez escapámos, foi o do lado. Somos solidários nos piores momentos, mesmo cheios de egoísmo. Anjos brancos atarefados de um lado para o outro, sem parar, usam todos os estratagemas e truques e magias. Uma vezes sucedem, quase sempre, não desistem... são homens. Um homem de barba vestido de negro, a mulher também, a família imensa, lá fora acampada, em negro, entram constantemente por ali adentro, ambiente desinfectado, sem lavar as mãos. Não ligam a isso apesar dos protestos constantes dos anjos. Esquecem-se de pôr a bata verde, o verde que separa o ar pur

O olho de vidro da minha tia florinda

A minha tia tinha um olho de vidro e à noite afogava-o, maneira de dizer ,num copo de água em cima do psiché. A água não era gaseificada, mas constituíam-se pequeníssimas e inúmeras bolhas à sua volta. A modos que um olho numa flute de champanhe. Para quem está habituado a dentaduras a boiar, esta foi uma grande ideia da minha tia. Sendo uma mulher com o sentido prático da vida, e como não se está a ver ninguém dormir com um fechado e outro aberto,   não tendo outros inquilinos, arrendou o aquário ao vítreo. Foi o meu avô que lhe ofereceu o olho, mais para ganhar as graças da sogra e ficar oficializado o namoro com a minha avó, sua irmã , do que atenções à zarolha. Foi no entanto um gesto de simpatia. Um dia já sem memória que a bicheza das campas   as comeram ao mesmo tempo que as carnes, chegou a casa delas com um embrulho de papel pardo na mão e disse alheadamente: toma, a ver se encaixa. A minha tia desembrulhou-o na expectativa das testemunha