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ONTEM - FOLHETIM 3

O maior mistério de todos os tesouros é não se saber onde estão, pairarem escondidos do olhar, com inimagináveis riquezas que não se sabe se sim ou não. Por isso mesmo porque não se veem é que soltam as imaginações, desabridas, em cavalgadas sem rédeas. Se há coisa que vem em qualquer momento a jeito de todas as mentes menos as diminuídas, é a invenção de uma bela e robusta história. Entretém, preenche, justifica, dulcifica. Os miúdos têm uma curiosidade insaturável. Há casinhotas completamente desinteressantes e outras que despertam sururus, mistérios insondáveis. Estão em fila e têm as portas de madeira pintadas de amarelo, canário. Estão numeradas ou não, talvez. De todas, a que se destaca é a número três, número que deus fez e neste caso o que calhou ao fotógrafo, que a habita (uma forma de dizer) e vive com a família no rés-do-chão esquerdo. Não é um homem de simpatias fáceis. Um fotógrafo tira fotografias, mas o senhor Casimiro nunca foi capatdo na via pública
Desânimo, tristeza, choro, impotência. Este país, bonito, não é para ninguém. É muita loucura. Num dia campeões de tudo, no segundo seguinte o caos da negritude absoluta. Nada, somos o nada. Os palhaços ao serviço passeiam-se nas televisões, Belos discursos gongóricos. Putrefactos discursos. Ninguém faz nada e todos os demais que são ninguém, Não querem saber de nada. Hoje e amanhã os rostos ficam carregados e choram. Depois, continuarão a palitar os dentes, indiferentes, amorfos, Completamente estúpidos.

ESPECIARIAS

É a loja mais fotografada da Rua dos Bacalhoeiros, em Lisboa. Os turistas acham que são especiarias, como as que se encontram espalhadas pelas medinas do Norte de África. Só é estranho o facto de por cá usarmos especiarias de moagem grossa

TAMBÉM HÁ SANTOS NAS PERIFERIAS

São labaredas e enormes, têm mau aspecto, feias. Toros grossos de madeira ardem descuidadamente, chispam faíscas. Fumo branco. Como todo o fumo, escapa-se na lógica de subir às alturas e dissipar-se. Os bombeiros, atarefadíssimos, andam de um lado para o outro, concentrados nos trabalhos sérios dos bombeiros, cada um na sua missão. Trabalham bem em equipa. Falam-se poucas palavras. Nestas condições para se ser preciso, não se fala mesmo. Há tensão no ar, também nervosa. O ambiente está carregado, mas a organização é exemplar, a resposta imediata, irrepreensível. Quando parecia que tudo estava perdido, afinal as primeiras sardinhas do ano estão excelentes. Comem-se no quartel de bombeiros de Queluz, urbe densa, que não tem só um palácio azul e quartel de tropas artilheiras e gente de multiculturas que a vivem, como igualmente uma comemoração dos santos populares -no que respeita ao aprumo do serviço, a diversidade da carta e a qualidade do produto –

A INTERROGAÇÃO

Ando a escrever um livro, não a minha obra prima. Essa depois de escrita tomou por decisão, que respeito e não contrario, a procura de refúgio monástico. Fechou-se numa gaveta que por lá tenho, e emudeceu. Respeito as suas convicções e não a vou visitar. Ando a escrever um livro que fala de amor. Não é por ser esse tema, podia ser outro, mas não consigo terminar. Acho que me tomei eu mesmo de amor por ele, impossibilitando-me de libertar o objecto amado. O amargo da perda ou da perca – que nunca sei – abate-me. Encontro sempre e por isso, uma boa desculpa para acrescentar algo mais, aplainar palavras mais rudes, rever pontuações. Como se soubesse fazer isso, aplainar ou rever. São assuntos de entendidos e eu não sou entendido, em nada. Mas são as desculpas, para termos um convívio diário, e enquanto se mantém uma relação assim, mesmo que já não seja honesta, atiça-se a esperança de mantermos uma dependência. Ela, a história, estará desejosa de ganhar a sua, neste ca

ONTEM - FOLHETIM 2

O chão é de pedra de calçada, sem desenhos, é todo branco, irregular, português. O espaço que delimita o pátio nas traseiras do edifício em “L” parece gigantesco, mas tem pouco mais de cem metros quadrados, um rectângulo quase perfeito com dois lados de paredes meias com as janelas (os quartos e as cozinhas estão viradas para esse lado), no lado oposto uma linha de casinhotas de arrumações, numeradas, uma por inquilino. Os rapazes quando jogam a bola, sempre, passam o tempo a subir ao tecto das casinhas e a saltar para o pátio do prédio ao lado para a apanharem. É um prédio com poucas crianças e as que saem juntam-se às do lado de cá. A porteira deles é rija, bigodenta, quando apanha um profanador de pátio alheio leva-o, vitoriosa, uma orelinha vermelha prensada pelas pinças dos seus dedos enrugados, ao tribunal dos progenitores ou substitutos ao serviço. Saltar para o prédio do lado é uma picardia escaldante, onde se fazem muitos heróis. No outro extremo do rectângulo, u

PARABÉNS

C umpro anos mas não sei quantos. Os da cronologia estão contados, não está aí o problema. É o não saber se aparento mais ou menos, sendo dias que mais, outros muito menos. Não estaria mal que o corpo acompanhasse, mas não, e é esse o constrangimento e não é de pequena importância. Desarmoniza o gosto de viver, que o tenho, com tantas variações comezinhas de uns dias melhor e outros que podiam ser. Em todo o caso gosto mais de antecipar a perspectiva panorâmica de uma agradável paisagem de futuro do que andar a afastar das costas as brumas do que já foi. Amanhã começa um novo ciclo até à próxima comemoração, e parece ser óbvio que se apresenta todo um cardápio de possibilidades de que acabe por voltar,daqui a um ano, a sentir rigorosamente o mesmo  com a agravante de  o corpo ainda estar mais distante de uma relação a dois que tende a piorar irrevogavelmente.