Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

PREFIRO NÃO FAZER

  Todos os dias, no minuto certo da hora certa, ele regista no relógio do ponto a sua entrada na repartição. A repartição de que se fala chama-se o Instituto das Boas Ideias, organismo que o governo criou, não que tivesse para eles sido uma boa ideia, mas porque, num recente discurso à nação, o primeiro-ministro, pressionado pelos jornalistas que não largam as presas - mesmo as inocentes - para se ver livre das críticas que sobre si recaiam, anunciou que convidaria todo o povo a enviar ideias boas (para uma entidade que o governo iria, para agilizar criar imediatamente), ajudando assim o governo a governar melhor e com maior cumplicidade dos seus eleitores. O senhor Aparício, que trabalhou desde catraio na função pública (entrou como moço de fretes, tinha ele os seus quinze anos), funcionário exemplar, transitou para este novo instituto, e estava orgulhoso disso. A sua função, fundamental, é de receber o correio das ideias e separá-las e colocá-las numa das três prateleiras na sua es

O SOUSA MARTINS

  A minha avó Maria das Neves foi uma mulher do seu tempo, supersticiosa e crente. Por via de dúvidas, assinou uma apólice que lhe cobria todos os riscos e danos, subscrevendo fenómenos animistas, espiritas e mágicos, ao lado de episódios de fé, produto acabado de uma igreja séria, com culto reconhecido e validado, deuses e santos com provas dadas e milagres devidamente reconhecidos por um colégio rigoroso e quase cientifico de clérigos com muita prática em reconhecer fenómenos milagrosos como episódios do divino, sendo por isso mesmo especialistas. A minha avó fazia promessas à estátua do Sousa Martins, no largo dos Mártires da Pátria, estátua essa que é o maior altar de Lisboa, em céu aberto, do culto do paranormal em versão português suave. Uma coisa é certa, se há tantos (vêm da província até) a colocarem à volta da estátua fotografias de entes queridos, pedidos em verso e em prosa escritos em tabuinhas, braços e pernas em parafina, cabeças em parafina, órgãos em parafina, alguma

O MOSTEIRO

  O nosso mosteiro é uma casa grande onde residimos os dois, em voto de desapego e contenção da palavra, a beleza ruidosa do silêncio. Eu sou o abade e o senhor Darwin é somente monge (fez votos há muito pouco tempo). Fazemos causa nossa cumprir com agrado essas regras monacais de simplicidade. Só nos Domingos e dias festivos, falamos um com o outro. Banalidades, para libertar espaço às palavras que se acumularam nas nossas cabeças durante a semana. Consomem-se nesses dias, alguns vernáculos, para limpar o palato da alma. Eu mais do que ele. Depois, em caindo de novo o palco da segunda-feira, voltamos aos nossos exercícios espirituais e afazeres místicos. Eu faço leituras em voz alta de Santa Teresa e a mística e o encontro de Deus, mas não sei se o Darwin percebe, ou estando com o focinho baixo e olhos semicerrados estará a rezar (rezamos em cântico gregoriano que é muito mais apropriado a uma comunidade intelectual como a nossa), ou mesmo a dormitar que o malandro às vezes deixa-se

O ÓSCAR, CÃO

  Já falei dele, mas nunca é de mais. Gostamos de nomes pouco comuns e não diferenciando espécies animais – daí o incomum, quem é da família é da família -, damo-nos por vezes nomes excêntricos.  Lembro-me do tio Tertuliano, da tia Florinda, da cadela Maria Balbina, do cão Ancónio  - que depois, por consideração à  minha mãe que só conhecendo o nome Paulo, ter em casa um cão com o nome desses só lhe iria complicar ainda mais a vida – , que se passou a chamar  Óscar, nome que o meu sobrinho mais novo veio a ganhar, e quando souber disto não sei se irá gostar. Do Óscar, o cão, fui parteiro e coveiro, o que me extravasou de alegria, e secou-me de tristeza. Dei-lhe vida e tirei-lhe vida, e nunca quis ser deus, foi o mais próximo que estive e não quero para mim esse desígnio. Assistir à sua alvorada e ao seu crepúsculo, foi forte, e se é para sofrer, antes humano do que deus. O fim da sua história abriu uma ferida que doeu a cicatrizar. Quando os meus pais, livres dos filhos, começaram

A QUIMICA DAS CORES

Se fosse lobo seria siberiano, do Ártico, grandioso, por ser lobo e pelo manto volumoso que o reveste. Seria, no porte e pela atitude, uma macho alfa, como poderia ser uma fêmea alfa, desconhece-se se no reino animal há preconceitos de género. Mas não era lobo, era um magnífico exemplar dos cães pastores-alemães. Inteligentes como os seus compatriotas humanos, quase todos, porque há sempre excepções.  Qualquer treinador de cães nesses idos anos oitenta do século passado, gostaria de ter algum no seu curriculum de ensinador de cães, e eu, que mal me ensinei a mim mesmo, mas que não deixo de tentar, senti o meu ego piscar faíscas de autoestima, por estar a ensinar um cão-pastor alemão a defender o património do seu dono, um bar em Portugalete , uma periferia operária da Bilbao de então. Eu bem tentei, e o curso que deveria ser de um mês já ia nos três. O animal era encantador e estabelecemos uma boa relação de amizade apesar de eu não saber falar basco, e ele também não porque era cã

CEROULAS

Cresci numa família que usava ceroulas, os homens. A sociedade dividia-se entre os que usavam e os que não usavam, fui parar sem escolher, ao primeiro grupo. E como está de se entender, eu também as usei. Confesso que achava ridículo (palavra que lá em casa não se empregava e tenho pena porque não desgosto dela),   quando de manhã via o meu avô ou o meu pai na casa de banho, em ceroulas, pareciam-me pinguins, a passarem com todos os cuidados a brilhantina pelos cabelos, revoltos nas voltas das noites, prazeres ou insónias, alinhados durante o dia em concordância com as normas das repartições públicas: o meu avô nos correios, o meu pai empregado de escritório. O que nunca perdoei nas ceroulas, o que me denunciou tantas e tantas vezes no recreio da escola primária, era aquela faixa mais ou menos branca, a sobressair aos olhos do mundo, por debaixo da bainha das calças e nem as meias pretas, cumpriam a tarefa de esconder a vergonha alheia, ou porque o cano dos tornozelos era já de si cu

OS LIVROS

    Nas contabilidades impossíveis por falta de acento nos livros do “Deve” e do “Haver”, não foram muitos os dias em que não tenha tido a companhia de um livro. Se saio de casa e por distração me esqueço de trazer um, se já estiver demasiado afastado para voltar atrás, não descanso enquanto não termino o que vou fazer e regresso incomodado. Nesse lapso de tempo não estou inteiro, falta-me algo de mim. Não vou todo para onde vou porque me esqueci de levar um livro. E quando tenho uma ausência mais prolongada, de dias por exemplo, escolho os que acho adequados para a viagem, mesmo que seja uma primeira visita, que não saiba o que vou encontrar e ver. Ainda assim tento imaginar um ou mais livros que se adequem à ideia artificial que construo do sítio para onde vou, naquelas expectativas que quase todos colocamos quando partimos ao encontro de um lugar novo. Sei bem o que é a solidão, estar um dia sem falar a não ser com a minha interioridade, mas não sei quanto tempo aguentaria viver