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O QUE SE SONHA E O QUE SE É

Sonhei, já não vou ser um navegante curioso, de mares incógnitos; já não vou ao sabor de rumos perdidos, desnorteado pelas bússolas, doidas e desmagnetizadas por culpa das acções dos homens, que alteraram a harmonia da terra; não vou passar cabos tormentosos a pique, nem defrontar monstros aterradores; não chegarei a dizer, aproveitando os ventos que sibilam, que venho da terra dos Descobridores, que se apaziguem as águas e as tempestades, para eu poder passar. Sou marinheiro de natureza e feitio e tenho pressa de amarar em todos os portos e aprender a falar línguas desconhecidas e complexas, e dar-me com todos que venho por bem e todos quero conhecer. O tempo, esse inexorável carrasco dos sonhos, cilindrou o meu desejo, empurrou-me para outros futuros. Começo a chegar tarde a tudo e as portas fecham-se com estrondo perante a minha incredulidade. Quando era pequeno, quando ainda podia ser tudo, até o impossível, queria ser marinheiro e possuir um belo barco de madeira envernizada e

A BOLA DOS TRAPOS

  A bola tinha uma redondez duvidosa, com altos e baixos, que não beneficiavam nem uns nem outros. Os resultados não eram influenciados pela sua irregularidade. Nem havia interesse pelos resultados. Estava feita de trapos e sobras, restos de roupa surripiados das mães e das avós. Remendos dos remendos de vidas difíceis. A bola era o eixo do mundo, um eixo móvel, naquele pedaço de rua também ela incomum, quase mal-acabada, cuja monotonia apesar de estar no mapa de uma cidade, era apenas interrompida por uma mula ocasional e entediada, que transportava, para cima, para baixo, a carroça do leite, indiferente à sua vida e a dos outros. Naqueles tempos parecia que não havia gente humana na gente que frequentava as ruas. Os transeuntes, recolhidos, ensimesmados, passavam apressadamente, encostados aos muros e às paredes das casas, procurando sombras, mimetizados, sublinhando o seu anonimato. Vinham e íam, a fazerem-se irreais, fumos, sem contorno nem rosto. Eram tempos de medo. As crianç

UMA UTOPIA DO DIREITO AO DELÍRIO*

Que tal se arriscamos delirar um pouco? Que tal se cravamos os nossos olhos para além da infâmia, tentando adivinhar outro mundo que seja possível e fascinante? O ar, limpo, puro de todo o veneno que não provenha dos medos humanos e das tóxicas paixões humanas. Nas ruas, os automóveis serão abalroados pelos cães e outros seres livres que nelas se passeiem; As pessoas não serão sequestradas pelo automóvel, nem serão programadas pelo computador, nem serão compradas pelo supermercado, nem tão pouco vistas pelo televisor, impávidas, hipnotizadas de tédio; O televisor deixará de ser o membro mais importante da família e será tratado como a tábua de passar a ferro ou a máquina de lavar a roupa; Acrescentar-se-á aos códigos penais o delito da estupidez, que cometem aqueles que vivem para ter ou para ganhar, em vez de simplesmente viverem, sem mais, como canta o pássaro sem saber que o faz e como a brinca a criança sem saber que brinca, vivendo a eternidade nesse momento único, que

PESSOA E DEMOCRACIA

Toda a história está manchada por crimes tal como toda a vida individual está obscurecida por errores e por faltas. Dir-se-ia que o crime é o pecado original da história humana. Se formos à tradição bíblica começa, já fora do paraíso, com a história de Caim e Abel a primeira guerra civil... E, contudo, a partir desta desdita, pode-se distinguir, segundo o que vamos dizendo, a história manchada por algum crime da história que é crime. Este último é o que acontece neste processo de endeusamento. Como no amor não é constante o facto de que raramente um amor entre duas pessoas não seja obscurecido por alguma falta cometida em comum, alguma cumplicidade; em certos amores que se resolvem num crime que parece que procuraram desde o início, como se tal tivesse sido a sua finalidade, o seu único desígnio. O endeusamento produz necessária e inevitavelmente, crime, porque apenas com esta total transgressão da lei se compensa a exaltação absoluta da pessoa. Apenas o mal pode manter, enquanto

AOS AMORES INCONDICIONAIS

  A tua morte desnecessária e irrelevante para o andar das coisas – podias não ter morrido e ninguém dava por isso, menos eu que dava por te querer continuar a ter – foi o eco sem eco do grande fundo, uma entrada directa em velocidade, a provocar vertigens no abismo do silêncio, a queda fatal num lugar não físico, inominável, mais frio e silencioso que os termómetros mais frios que marcam nas terras longínquas do extremo norte. Nem com o mais excêntrico dos esforços a consigo imaginar.  Eu pensei, e digo-te com a maior das honestidades, que tu nunca morrerias. Sei que é negação e que o devo ultrapassar, mas não encontro explicação para seres chamada tão precocemente. Havia outros, primeiro. O poço sem fundo. Caíste, foste levada, eu sei, todos estamos a caminho. A imersão fatal e definitiva no obsceno nada. A tua morte foi absurda, escusada, podia ser mais tarde, o pouco suficiente para nos usufruirmos um pouco mais, nunca seria tempo suficiente, mas ainda assim, a nossa ligação única

Adeus, bye-bye.

Um nome só ganha vida se contar uma história. Seja nome de pessoa, seja nome de um lugar. As histórias das pessoas revelam-se no quotidiano partilhado; as dos sítios, contadas pelas gentes que os habitam e calcorreadas por nós. E sendo assim, ganha-se intimidade, e é esse o conhecimento de todas as coisas animadas e inanimadas. Expulsei-me por vontade, mas não por liberdade, da grande cidade, que chamava minha. Intoxicado pelo caos instalado, o desnorte, e uma horda cada vez mais avassaladora de turistas bárbaros, agarrados e dependentes ao grande circo da especulação e do lucro do consumo de tudo e o mais rápido que puderem, devorando o tempo. Chegam mais rápido à morte, mas pensam que não: pensam que viveram mais. Saí. Bati com a porta. Virei costas e exprimi o melhor que pude, desfraldando-lhes nas fronhas, o dedo do meio. É verdade, o mais erecto e esticado que consegui. Não sou de asneiras, mas disse-as. Esgotei-as todas, para onde vou não vou precisar delas. Adeus até mais

A AURORA DOS DIAS

 É em momentos inusitados, que se aprecia como um sopro suave e cálido de um final de dia de verão, o cair da noite que traz consigo num sossegar particular e seu, uma paz ao mundo, a intenção. Conciliamo-nos esboçando o movimento lento e simbólico de um abraço, e ficamos expectantes e noviços, pelo dia de amanhã, que virá pleno de todas as possibilidades e impossíveis. Para ser genuíno e credível, o que importa é haver total desconhecimento e nem sequer antecipação certa, de como vai ser o dia de amanhã. Sendo assim, ficam reunidas as condições para voltar a acontecer o deslumbramento inigualável e irrepetível, de que amanhã, afastadas todas nuvens negras, o mundo renasça puro e absoluto. Se for assim que aconteça, que seja tão belo que lacrimeje os olhos, de alegria e fé, uma fé primordial e ateia, de que vale a pena estar vivo, para assistir a esse nascer do dia novo, e com ele, a criação de todos os sonhos utópicos e poéticos.