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UMA UTOPIA DO DIREITO AO DELÍRIO*

Que tal se arriscamos delirar um pouco? Que tal se cravamos os nossos olhos para além da infâmia, tentando adivinhar outro mundo que seja possível e fascinante? O ar, limpo, puro de todo o veneno que não provenha dos medos humanos e das tóxicas paixões humanas. Nas ruas, os automóveis serão abalroados pelos cães e outros seres livres que nelas se passeiem; As pessoas não serão sequestradas pelo automóvel, nem serão programadas pelo computador, nem serão compradas pelo supermercado, nem tão pouco vistas pelo televisor, impávidas, hipnotizadas de tédio; O televisor deixará de ser o membro mais importante da família e será tratado como a tábua de passar a ferro ou a máquina de lavar a roupa; Acrescentar-se-á aos códigos penais o delito da estupidez, que cometem aqueles que vivem para ter ou para ganhar, em vez de simplesmente viverem, sem mais, como canta o pássaro sem saber que o faz e como a brinca a criança sem saber que brinca, vivendo a eternidade nesse momento único, que

PESSOA E DEMOCRACIA

Toda a história está manchada por crimes tal como toda a vida individual está obscurecida por errores e por faltas. Dir-se-ia que o crime é o pecado original da história humana. Se formos à tradição bíblica começa, já fora do paraíso, com a história de Caim e Abel a primeira guerra civil... E, contudo, a partir desta desdita, pode-se distinguir, segundo o que vamos dizendo, a história manchada por algum crime da história que é crime. Este último é o que acontece neste processo de endeusamento. Como no amor não é constante o facto de que raramente um amor entre duas pessoas não seja obscurecido por alguma falta cometida em comum, alguma cumplicidade; em certos amores que se resolvem num crime que parece que procuraram desde o início, como se tal tivesse sido a sua finalidade, o seu único desígnio. O endeusamento produz necessária e inevitavelmente, crime, porque apenas com esta total transgressão da lei se compensa a exaltação absoluta da pessoa. Apenas o mal pode manter, enquanto

AOS AMORES INCONDICIONAIS

  A tua morte desnecessária e irrelevante para o andar das coisas – podias não ter morrido e ninguém dava por isso, menos eu que dava por te querer continuar a ter – foi o eco sem eco do grande fundo, uma entrada directa em velocidade, a provocar vertigens no abismo do silêncio, a queda fatal num lugar não físico, inominável, mais frio e silencioso que os termómetros mais frios que marcam nas terras longínquas do extremo norte. Nem com o mais excêntrico dos esforços a consigo imaginar.  Eu pensei, e digo-te com a maior das honestidades, que tu nunca morrerias. Sei que é negação e que o devo ultrapassar, mas não encontro explicação para seres chamada tão precocemente. Havia outros, primeiro. O poço sem fundo. Caíste, foste levada, eu sei, todos estamos a caminho. A imersão fatal e definitiva no obsceno nada. A tua morte foi absurda, escusada, podia ser mais tarde, o pouco suficiente para nos usufruirmos um pouco mais, nunca seria tempo suficiente, mas ainda assim, a nossa ligação única

Adeus, bye-bye.

Um nome só ganha vida se contar uma história. Seja nome de pessoa, seja nome de um lugar. As histórias das pessoas revelam-se no quotidiano partilhado; as dos sítios, contadas pelas gentes que os habitam e calcorreadas por nós. E sendo assim, ganha-se intimidade, e é esse o conhecimento de todas as coisas animadas e inanimadas. Expulsei-me por vontade, mas não por liberdade, da grande cidade, que chamava minha. Intoxicado pelo caos instalado, o desnorte, e uma horda cada vez mais avassaladora de turistas bárbaros, agarrados e dependentes ao grande circo da especulação e do lucro do consumo de tudo e o mais rápido que puderem, devorando o tempo. Chegam mais rápido à morte, mas pensam que não: pensam que viveram mais. Saí. Bati com a porta. Virei costas e exprimi o melhor que pude, desfraldando-lhes nas fronhas, o dedo do meio. É verdade, o mais erecto e esticado que consegui. Não sou de asneiras, mas disse-as. Esgotei-as todas, para onde vou não vou precisar delas. Adeus até mais

A AURORA DOS DIAS

 É em momentos inusitados, que se aprecia como um sopro suave e cálido de um final de dia de verão, o cair da noite que traz consigo num sossegar particular e seu, uma paz ao mundo, a intenção. Conciliamo-nos esboçando o movimento lento e simbólico de um abraço, e ficamos expectantes e noviços, pelo dia de amanhã, que virá pleno de todas as possibilidades e impossíveis. Para ser genuíno e credível, o que importa é haver total desconhecimento e nem sequer antecipação certa, de como vai ser o dia de amanhã. Sendo assim, ficam reunidas as condições para voltar a acontecer o deslumbramento inigualável e irrepetível, de que amanhã, afastadas todas nuvens negras, o mundo renasça puro e absoluto. Se for assim que aconteça, que seja tão belo que lacrimeje os olhos, de alegria e fé, uma fé primordial e ateia, de que vale a pena estar vivo, para assistir a esse nascer do dia novo, e com ele, a criação de todos os sonhos utópicos e poéticos.

FOGACHO DE UMA MEMÓRIA

Seria uma catedral gótica, o silêncio, o som vago das lajes de pedra concordando em suster o peso enorme de todo o edifício, figuração alegórica, a terra que suporta o peso do céu; uma ausência de som que não é uma ausência de som, mas sim murmúrios; o ranger tímido do soalho de madeira antiga de não querer incomodar a harmonia da serenidade. Um miúdo rasgando o tempo de fim de tarde desse espaço quase religioso, miúdo irrelevante, estarrecido nessa sala vazia de outras pessoas, fascinado pela parede de livros que lhe parece assumir uma dimensão, precisamente, de catedral. Onde estão os da casa, não se sabe. O miúdo espera por alguma razão que será a de brincar, o seu amigo, o da casa, que pode estar nesse momento no quarto a estudar e por isso a sala está vazia e o miúdo experimenta essas sensações em solidão. Não se toca num altar, nem por curiosidade. Assim, ele olha, quer, mas não toca em nenhuma das lombadas que o atraem tão magneticamente. A pedir que sejam lembradas, esc

O PESO QUE AS PEDRAS PESAM

A verdade, seja o que ela for, é que sempre me senti embaraçado. Desde que tenho a noção clara de que penso autonomamente. Com o tempo e as etapas da vida, não consegui pacificar-me dessa sensação de corpo estranho, que está a mais, um grão obstinado que empena a engrenagem de funcionar convenientemente. Pode ter sido meu o equívoco, não terei entendido e reagi de formas inapropriadas. Acho que não. Eles não podiam ser mais diferentes: um, histriónico, a chamar a sua atenção cansativamente; o outro, intelectualmente árido. Os dois, cada um a seu jeito, sempre a esgravatarem vias para desmontar a ilusão dos sonhos alheios. A verdade, também, a minha verdade, é que eu não queria nutrir essa antecâmara de sentimento frustrado, ninguém quer. Todos ambicionam o seu contrário: o deslumbre, o fascínio ofuscante, a imitação do modelo, construir um pedestal em mármore valioso para os seus heróis, semideuses do nosso Olimpo privado. Essa pedra pesadíssima com o peso que pesa todo o mundo e