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Mensagens

VERÃO

O prazer dos dias caldosos, lugares doces, caiados, andaluzes, Quando o calor pinga nos corpos, e nos convida a inacção. O gosto da ausência do tempo das obrigações, não ter nada de importante para fazer senão, Estar. Os olhos pousando em coisas fúteis: Um pássaro escondido numa árvore, uma pequena lagartixa aquecendo-se numa parede recebe o sol bárbaro nas horas do meio-dia, a formiga no carreiro. A sensação, forte e sem peso, dos ruídos do silêncio. Os grilos, solistas fundamentais; o zumbir da abelha laboriosa e incansável; o coaxar dos sapos no sapal; o som distante, quase mínimo, de pessoas que sussurram por trás do cenário. O som que não se ouve do silêncio. Os odores, Da brisa do mar, das flores, dos figos, do limão. Do pão acabado de fazer, ao pequeno-almoço. Do grelhador. A sensação refrescante na pele queimada, a água fria de um chuveiro improvisado no jardim. As conversas ao pôr do sol, enlaçadas com um generoso vinho branco.

TOUPEIRAS

  Havendo ou não um túnel, curto ou comprido, onde a luz é escassa, quase trevas, e sem que se veja, se sente apenas que se caminha numa direcção que não se sabe, até que finalmente, depois de passarem todos os filmes e projecções dos anos que foram vividos, uma pequena impressão de luz, tão débil, que mal se pode acreditar, pode ser uma falha da visão, um erro, se avista a uma distância que não se calcula, se perto, se longe. Havendo o desfilar por ordem de um caos que se instala sem regra nem ordem, dos acontecimentos, episódios, histórias boas e más e indiferentes, datas comemorativas, datas de pesar, datas formais, datas por obrigação, relações e quebras de relações, laços fortes e que se desfizeram num soprar de brisa fraca, rostos, definidos, indefinidos, belos, alegres, sofridos, e as outras coisas todas, tantas ou mais talvez, as paisagens, as linhas de horizonte, o Ceu, o Mar, a Terra, os seres diversos e imprescindíveis. Havendo tudo isso e tudo o que se esqueceu, e que foi

AS MENINAS

  Nunca fui capaz de me cruzar com uma pessoa sem a cumprimentar. E elas também me saudavam. Não sabia, mas inventei-lhes nomes, não se pode tratar ninguém sem se poder nomear. Conhecíamo-nos. Eramos do sítio. Eu sabia que todos os dias a determinadas horas elas estavam nos mesmos lugares das mesmas ruas do meu bairro, e elas sabiam que eu passaria por essas ruas, miúdo tímido, a mal levantar o olhar ao olhar delas. Cada um de nós tinha os seus afazeres, mas nesse ponto eu não tenho a certeza de na altura, saber os afazeres delas. Teria talvez uma ideia vaga ao que se dedicavam, porque estavam ali, o que não me interessava, porque o que valorizava e valorizo, é a simpatia das pessoas. Nisso eramos fartos. Foram anos de convívio, em todas as estações do ano e na altura eram quatro, elas sempre nos mesmos sítios, eu, a passar por elas, para cima para baixo, nas ruas amplas do meu bairro. Os passeios eram desafogados e estavam pontilhados num alinhamento geométrico, por árvores de grand

O TIO FUNAMBULISTA

  O meu tio José era funambulista, mas a família não o sabia e mesmo sabendo, pelo nome, não iam lá, ao âmago, que é o significado que as palavras dão às coisas. Mesmo que o meu tio lhes explicasse, eles nunca iriam compreender como é que uma pessoa desperdiça uma vida equilibrando-se numa corda a não se sabe quantos metros de altura do chão. Para quê? O que queria ele demonstrar ao mundo, com essa atitude?  As irmãs pensavam que ele era limpa-chaminés, o que já era uma aproximação, mesmo que discreta, à sua verdadeira actividade profissional. Os cunhados, homens brutos e pouco instruídos, só falavam de futebol e mulheres. Como tal, temas como o do funambulismo não eram considerados nem tidos em consideração. Por isso, pouco ligavam a esse cunhado. Se lhe tivessem alguma vez perguntado, ele ter-lhes-ia dito que era um desafio de superação, que se tornou obsessivo com o passar do tempo. Que até tinha vertigens e medo das alturas, mas era uma pulsão mais forte do que ele e por isso insis

ESPARTILHOS

  Para quem estava habituado ao convívio frequente com o olho de vidro da minha tia Florinda e com as dentaduras postiças em banhos-maria nos copos de vidro, espalhadas pelas mesas de cabeceira das casas familiares, coisa que ao princípio me intrigava porque eu, os meus dentes, não os conseguia tirar nem pôr, os pequenos relicários com dentes minúsculos, avulso, e pequenas madeixas de cabelo, eram banalidades que mal prestava atenção. O que me assustava mesmo, mas a que não resistia de pregar o olhar e se pudesse a mão, era um relicário muito particular que uma irmã da tia do olho falso, tia, portanto, trazia sempre ao peito, pendurado num fio, supostamente de prata, em contraste com o seu semblante carregado, o rosto mais melancólico que eu conheci, o seu vestido negro, o lenço preto a apanhar os cabelos. Toda ela escuridão. Todos sabíamos o que continha e a história triste que lhe estava associada. Mas para mim era um impulso irresistível, um dia tinha que o possuir. Não havia forma

O meu avô era caçador e tinha um cão

O meu avô, apesar de respeitar a natureza, os animais, as plantas e a harmonia de todos, era caçador. Era um homem do campo e por isso era caçador. Veio e completou-se homem na cidade, mas o chamamento, quando se manifesta é mais forte do que a sua negação. Como não podia ter uma horta dentro de uma casa exígua, passou a ser caçador aos fim-de-semana. Os caçadores têm um cão, ou mais do que um, até têm furões, parece que ilegalmente. Ele tinha um cão, amarrado na varanda do apartamento e só ganhava a sua liberdade de cão aos domingos quando ia caçar com o meu avô. Rapava o tacho do tempo, e corria, corria desalmadamente, como se fosse a sua derradeira corrida e havendo que aproveitar essa sensação de leveza e poder, corria até mais não. Umas vezes acertava na direcção onde tinham caído as peças abatidas pelo meu avô, outras ia em sentido contrário, pouco lhe importava, e o meu avô, de um cão preso numa varanda toda a semana, não podia esperar mais, nisso era complacente. Nunca lhe ouvi

DESNORTE

  Estavam num teatro e morreram. Não porque se representasse um drama, uma tragédia terrível e muito intensa, que pela emoção causada, muito forte, muito forte, tão forte que inaguentável, matasse os espectadores. Não. Estavam num teatro e morreram sem que se estivesse a representar alguma peça. Foi o real que aconteceu, com a sua nudez, e por vezes crueldade, que os matou por estarem li, talvez mesmo por essa razão: porque estavam ali. Não tinham para onde ir, esgotaram-se todas as opções. A guerra não se abateu mortal sob o teatro, abateu-se por todo o lado e as pessoas não tinham pontos de fuga, as bússolas deixaram de funcionar, perderam os caminhos certos das grutas escuras e frias e doentias e irrespiráveis, mas que lhes davam protecção. E quando é assim, quando se perde o norte e o sul, perde-se a luta contra a guerra, que se apodera dos nossos cadáveres, insaciável, nós que perdemos o sentido de orientação e já deixámos de saber viver. Ou desistimos