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ESPARTILHOS

  Para quem estava habituado ao convívio frequente com o olho de vidro da minha tia Florinda e com as dentaduras postiças em banhos-maria nos copos de vidro, espalhadas pelas mesas de cabeceira das casas familiares, coisa que ao princípio me intrigava porque eu, os meus dentes, não os conseguia tirar nem pôr, os pequenos relicários com dentes minúsculos, avulso, e pequenas madeixas de cabelo, eram banalidades que mal prestava atenção. O que me assustava mesmo, mas a que não resistia de pregar o olhar e se pudesse a mão, era um relicário muito particular que uma irmã da tia do olho falso, tia, portanto, trazia sempre ao peito, pendurado num fio, supostamente de prata, em contraste com o seu semblante carregado, o rosto mais melancólico que eu conheci, o seu vestido negro, o lenço preto a apanhar os cabelos. Toda ela escuridão. Todos sabíamos o que continha e a história triste que lhe estava associada. Mas para mim era um impulso irresistível, um dia tinha que o possuir. Não havia forma

O meu avô era caçador e tinha um cão

O meu avô, apesar de respeitar a natureza, os animais, as plantas e a harmonia de todos, era caçador. Era um homem do campo e por isso era caçador. Veio e completou-se homem na cidade, mas o chamamento, quando se manifesta é mais forte do que a sua negação. Como não podia ter uma horta dentro de uma casa exígua, passou a ser caçador aos fim-de-semana. Os caçadores têm um cão, ou mais do que um, até têm furões, parece que ilegalmente. Ele tinha um cão, amarrado na varanda do apartamento e só ganhava a sua liberdade de cão aos domingos quando ia caçar com o meu avô. Rapava o tacho do tempo, e corria, corria desalmadamente, como se fosse a sua derradeira corrida e havendo que aproveitar essa sensação de leveza e poder, corria até mais não. Umas vezes acertava na direcção onde tinham caído as peças abatidas pelo meu avô, outras ia em sentido contrário, pouco lhe importava, e o meu avô, de um cão preso numa varanda toda a semana, não podia esperar mais, nisso era complacente. Nunca lhe ouvi

DESNORTE

  Estavam num teatro e morreram. Não porque se representasse um drama, uma tragédia terrível e muito intensa, que pela emoção causada, muito forte, muito forte, tão forte que inaguentável, matasse os espectadores. Não. Estavam num teatro e morreram sem que se estivesse a representar alguma peça. Foi o real que aconteceu, com a sua nudez, e por vezes crueldade, que os matou por estarem li, talvez mesmo por essa razão: porque estavam ali. Não tinham para onde ir, esgotaram-se todas as opções. A guerra não se abateu mortal sob o teatro, abateu-se por todo o lado e as pessoas não tinham pontos de fuga, as bússolas deixaram de funcionar, perderam os caminhos certos das grutas escuras e frias e doentias e irrespiráveis, mas que lhes davam protecção. E quando é assim, quando se perde o norte e o sul, perde-se a luta contra a guerra, que se apodera dos nossos cadáveres, insaciável, nós que perdemos o sentido de orientação e já deixámos de saber viver. Ou desistimos

AS CEGONHAS

  Até tempos recentes, as cegonhas traziam equilibradas nos seus longos bicos as grandes obras dos homens, seus maiores tesouros, e entregavam-nos em todas as partes do mundo segundo planos e organização logística que desconhecemos, mas muito bem organizadas. Não interessa para a história o hiato temporal em que as mulheres grávidas e com grandes barrigas, aparecem de um momento para outro livres delas, lisinhas, que é o preciso instante, em que a cegonha, bica-lhes à porta com um recém-nascido adormecido e agradado, pelo balancear pendurado no bico, durante o voo que o trouxe pela primeira vez a casa. As cegonhas deixaram de fazer este serviço, há demasiados aviões que não lhes ligam nem a ninguém e são senhores do espaço aéreo. Elas atrapalham-se e sendo um trabalho de responsabilidade não arriscam entregar a mercadoria com defeitos, pelas alterações constantes de altitude e velocidade, a fugirem dos aviões, correndo mesmo o risco de deixá-la cair no abismo das alturas. É por essa ra

INQUIETAÇÕES SOBRE CORES

É em dias saturados a cinzento, que me falta o céu azul. Para o voltar a ver, fecho os olhos.  Sonho, e é então que tudo se aquieta na minha persistente inquietação, e consigo, descansado, enlear algumas palavras, um jogo de sombras e luz, o preto impresso no branco, que vou desenhando todos os dias nas folhas de papel macio e quente dos cadernos, os mesmos há anos, escolhidos em viagens e deambulações em lojas improváveis, ou comprados quanto tenho o chapéu pousado no bengaleiro, e fico, no mesmo local de sempre, numa certa pequena rua de Lisboa. São as poesias que dedico ao céu. Preencho os cadernos, todas as folhas, todas as linhas, e guardo-os, em fila, numa prateleira no meu quarto. Quando estou deitado, à noite somando e subtraindo sobre o dia que passou, ou de manhã acordando na expectativa triunfal de que estou a acordar para o melhor dia da minha vida, ponho os olhos neles, quase todos pretos e discretos, e vendo-os ocupar mais espaço na prateleira, sensibiliza-me. Está ali

CASACOS DE PELES

  Naqueles tempos, que podiam ter sido outros, outros finais de história, conjugação de factores e foram assim, dava-se muita atenção à apresentação das pessoas. Hoje também, mas é diferente, andam muitos a aparentar o que não são, endividando-se com vestimentas e objectos exteriores de riqueza, ou então, nos extremos, revestidos com excentricidades tribais. A normalização, pelo rasteiro, tomou conta de tudo. Naqueles tempos que os digo meus, porque foram os que presenciei e tive um pequeníssimo papel como figurante, na cena que representei no palco com alguns milhares de milhões de homens e mulheres que estavam vivos nessa altura, uma pessoa, andando numa rua de uma cidade qualquer identificava facilmente o patamar social de um transeunte com que se cruzasse. Adivinhava-lhe de imediato o seu estrato, e mesmo havendo, que sempre os houve, fura-vidas, com um olhar mais detalhado logo se encontraria um pormenor, um descuido, que denunciava a fraude. Até deslocando-nos de uma cidade g

CELEBRAÇÃO

Não encontro outro sentido senão celebrar a mulher todos os dias, como todos os dias celebro o homem e todos os outros humanos que têm agora uma identidade que desconheço o nome e o género. O mundo anda tão depressa e eu já não corro bem, não consigo ir atrás de todos os nomes, mas o que conta é que os celebro a todos. E também os estorninhos, e os brincos-de-princesa, e formações geológicas que não sei como se chamam. Mas celebro-as. Com isto, resolvi uma grande questão: não preciso de me preocupar com as celebrações e ter que todos os dias, fazer uma frase bonita e adequada para dar os  parabéns a estes e aqueles, não me vá esquecer de algum, que chatice. Poupo igualmente na utilização nos adjectivos, para não os gastar em demasia, guardando-os para ocasiões próprias, celebrações do foro intimo que fujam da mundanidade. Celebro a vida, o seu todo e particular, e os mundos finitos e infinitos e os inimagináveis a que não chego nem pelo pensamento. E dou-me bem com isto, não falho