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INQUIETAÇÕES SOBRE CORES

É em dias saturados a cinzento, que me falta o céu azul. Para o voltar a ver, fecho os olhos.  Sonho, e é então que tudo se aquieta na minha persistente inquietação, e consigo, descansado, enlear algumas palavras, um jogo de sombras e luz, o preto impresso no branco, que vou desenhando todos os dias nas folhas de papel macio e quente dos cadernos, os mesmos há anos, escolhidos em viagens e deambulações em lojas improváveis, ou comprados quanto tenho o chapéu pousado no bengaleiro, e fico, no mesmo local de sempre, numa certa pequena rua de Lisboa. São as poesias que dedico ao céu. Preencho os cadernos, todas as folhas, todas as linhas, e guardo-os, em fila, numa prateleira no meu quarto. Quando estou deitado, à noite somando e subtraindo sobre o dia que passou, ou de manhã acordando na expectativa triunfal de que estou a acordar para o melhor dia da minha vida, ponho os olhos neles, quase todos pretos e discretos, e vendo-os ocupar mais espaço na prateleira, sensibiliza-me. Está ali

CASACOS DE PELES

  Naqueles tempos, que podiam ter sido outros, outros finais de história, conjugação de factores e foram assim, dava-se muita atenção à apresentação das pessoas. Hoje também, mas é diferente, andam muitos a aparentar o que não são, endividando-se com vestimentas e objectos exteriores de riqueza, ou então, nos extremos, revestidos com excentricidades tribais. A normalização, pelo rasteiro, tomou conta de tudo. Naqueles tempos que os digo meus, porque foram os que presenciei e tive um pequeníssimo papel como figurante, na cena que representei no palco com alguns milhares de milhões de homens e mulheres que estavam vivos nessa altura, uma pessoa, andando numa rua de uma cidade qualquer identificava facilmente o patamar social de um transeunte com que se cruzasse. Adivinhava-lhe de imediato o seu estrato, e mesmo havendo, que sempre os houve, fura-vidas, com um olhar mais detalhado logo se encontraria um pormenor, um descuido, que denunciava a fraude. Até deslocando-nos de uma cidade g

CELEBRAÇÃO

Não encontro outro sentido senão celebrar a mulher todos os dias, como todos os dias celebro o homem e todos os outros humanos que têm agora uma identidade que desconheço o nome e o género. O mundo anda tão depressa e eu já não corro bem, não consigo ir atrás de todos os nomes, mas o que conta é que os celebro a todos. E também os estorninhos, e os brincos-de-princesa, e formações geológicas que não sei como se chamam. Mas celebro-as. Com isto, resolvi uma grande questão: não preciso de me preocupar com as celebrações e ter que todos os dias, fazer uma frase bonita e adequada para dar os  parabéns a estes e aqueles, não me vá esquecer de algum, que chatice. Poupo igualmente na utilização nos adjectivos, para não os gastar em demasia, guardando-os para ocasiões próprias, celebrações do foro intimo que fujam da mundanidade. Celebro a vida, o seu todo e particular, e os mundos finitos e infinitos e os inimagináveis a que não chego nem pelo pensamento. E dou-me bem com isto, não falho

AMBULÂNCIA-POSTAL

  Uma ambulância, postal. Não uma ambulância naquele sentido de serem anunciadoras de uma urgência, com luzes piscantes, sirenes agudas. Chamava-se assim mas não se sabe porque se chamava assim. A ambulância era uma carruagem de comboio, a última, contando desde a primeira, da locomotiva no sentido da retaguarda. O espaço interior dessa carruagem estava dividido em duas áreas: metade, uma espécie de armazém, a outra metade, um escritório. Nem isso, uma imitação de uma loja de correios. Neste caso, ambulante. A metade escritório estava forrada de prateleiras quadriculadas, com nomes de localidades, escritos à mão. Não havia códigos postais, só localidades. Uma bancada de madeira corria a toda a extensão dessa metade escritório da carruagem. Em fila, carimbos alinhados por uma ordem emanada dos correios que desconhecemos agora. Também selos metálicos, em relevo, para lacrar, a fazer prova de inviolabilidade dos documentos. O meu avô Mário trabalhou nas ambulâncias postais e reformou-se a

A QUINTA

Sentávamo-nos os dois e tínhamos longas conversas. Ou melhor, ele desenrolava memórias, como numa fita de celulóide a passar numa máquina de cinema antiga, contando-as pausadamente como relíquias orais que pouco se contam agora. Eu quase não me fazia notado, quase invisível, a ouvir com toda a atenção, para me recordar mais tarde, ficaria eu, algum dia, o fiel depositário desse tesouro e teria de as tratar bem e sabê-las de cor, para serem verosímeis na minha voz, mais não fosse contando-as para mim, ao adormecer, todas as noites, embalado por histórias de tempos e pessoas que deixaram de existir, como eu, um dia. Para que ele respirasse e acrescentasse drama e emoção ao que ia contar a seguir, mesmo que fosse só para acender um cigarro, fazia-lhe perguntas. Ele deixava-se levar, sabendo que com isso eu queria ganhar-lhe tempo, para me concentrar melhor e absorver todos os pormenores e detalhes. Sentávamo-nos os dois na parte de trás da casa, que não precisava de estar tão bem pint

A DESPEDIDA

  Um homem e uma mulher abraçam-se demoradamente. Não são novos. Abraçam-se como se estivessem a representar uma despedida definitiva. Um jornalista faz uma pergunta. Vai regressar ao seu país, defender o seu país distante. Entende-se agora a razão desse abraço, ou não. A mulher também vai com ele. Do que eles se despedem agora é deste país de cá, também deles, e desta paz do sol e dos ventos suaves, e das gentes amáveis e das cores tão fortes ,mas nada é garantido. É essa coisa estranha, difícil de explicar, de compreender. Que tipo de sentimento, de amor, esse? A quê? À terra? A uma língua? A uma identidade colectiva? A uma cultura? Não se sabe, nem interessa, que decisão tão difícil, ou se calhar tão fácil, homens e mulheres fazerem a viagem em sentido contrário: da sua terra de acolhimento e onde já lançaram raízes, para voltarem à terra de origem. Da protecção e do conforto para o medo atroz de uma guerra. Para defenderem a sua ideia, íntima e pessoal desse amor mais forte do qu

É A PAZ

  Em dias tranquilos e belos, consigo imaginar a paz, felicidade, como quiserem chamar. Quando o sol aquece mas não se intromete, quando se põe uma aragem suave, uma brisa que corre doce e transporta às suas costas odores perfumados, quando nessa quietação quase a parecer coisa de outros mundos, os pássaros chilreiam canções e as laboriosas abelhas colhem o futuro nos estigmas das flores, parteiras do mundo, páro, sento-me num banco velho sobre a janela da marquise do apartamento gasto, e vivo os gloriosos momentos de um fim de dia, no campo que trouxe para a cidade e que cabe na moldura dessa janela.   À minha esquerda, na continuação do telhado, pousam gaivotas e melros e falamos de coisas nossas. Em frente entre os prédios, a falha de um dente, há uma nesga por preencher. Vejo um pedaço do mar e a linha que marca o horizonte, e é precisamente nessa nesga, nem de propósito, que o sol se põe, fazendo espectáculos luminotécnicos exuberantes, banalidades para a natureza que não tem conc