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Mensagens

A DESPEDIDA

  Um homem e uma mulher abraçam-se demoradamente. Não são novos. Abraçam-se como se estivessem a representar uma despedida definitiva. Um jornalista faz uma pergunta. Vai regressar ao seu país, defender o seu país distante. Entende-se agora a razão desse abraço, ou não. A mulher também vai com ele. Do que eles se despedem agora é deste país de cá, também deles, e desta paz do sol e dos ventos suaves, e das gentes amáveis e das cores tão fortes ,mas nada é garantido. É essa coisa estranha, difícil de explicar, de compreender. Que tipo de sentimento, de amor, esse? A quê? À terra? A uma língua? A uma identidade colectiva? A uma cultura? Não se sabe, nem interessa, que decisão tão difícil, ou se calhar tão fácil, homens e mulheres fazerem a viagem em sentido contrário: da sua terra de acolhimento e onde já lançaram raízes, para voltarem à terra de origem. Da protecção e do conforto para o medo atroz de uma guerra. Para defenderem a sua ideia, íntima e pessoal desse amor mais forte do qu

É A PAZ

  Em dias tranquilos e belos, consigo imaginar a paz, felicidade, como quiserem chamar. Quando o sol aquece mas não se intromete, quando se põe uma aragem suave, uma brisa que corre doce e transporta às suas costas odores perfumados, quando nessa quietação quase a parecer coisa de outros mundos, os pássaros chilreiam canções e as laboriosas abelhas colhem o futuro nos estigmas das flores, parteiras do mundo, páro, sento-me num banco velho sobre a janela da marquise do apartamento gasto, e vivo os gloriosos momentos de um fim de dia, no campo que trouxe para a cidade e que cabe na moldura dessa janela.   À minha esquerda, na continuação do telhado, pousam gaivotas e melros e falamos de coisas nossas. Em frente entre os prédios, a falha de um dente, há uma nesga por preencher. Vejo um pedaço do mar e a linha que marca o horizonte, e é precisamente nessa nesga, nem de propósito, que o sol se põe, fazendo espectáculos luminotécnicos exuberantes, banalidades para a natureza que não tem conc

MARIA

  Fecha os olhos, vá, eu sou amiga do escuro e ele disse-me que também gosta de ti, não tenhas medo, puxa o lençol, aconchega-te, e descansa meu menino, eu velo por ti .  E ali ficava ela, sentada ao lado da cama, cansada de um dia cansado, a velar por mim, era o que sabia fazer melhor. Vejo-a a sorrir, olhos mínimos, pretos, rútilos, grandes pequenos olhos os seus. Franzina, muito magra, quase a desfazer-se, sem cuidado especial no vestir, a velar por mim. O corpo, como nenhum outro, resistiu às intempéries dos dias que se sucedem, a biologia cumpriu-se no que é expectável; a alma que se calhar não existe ou foi para partes incertas; o espirito, é o quê?; nada ficou, mas ficou tudo: a imagem tridimensional do seu corpo, do seu rosto, onde está sempre bem vestido um sorriso honestíssimo e bom, e os olhos, atentos, agudos, que veem todas as panorâmicas do mundo. Só não ficou a voz, esfumou-se como a areia escapa das mãos. É um grande esforço, faz tanta falta o som da voz. Perdeu-se. Qua

PUTO CHARILA, MACACO SEM PILA

  Os seios, dois, brasileiros, robustos, vastos, desfraldando-se sobre um decote abusador. Hora do banho. Velhíssimo. Sem identidade, como quem perdeu as chaves de casa, nem o seu nome conhece. Cortina densa e branca que cobre a memória. Á água quente é agradável. Não é. Não se sabe. A massagem delicada e minuciosa do sabonete pelo corpo faz espuma, amacia. É possível. Num momento sem medição, o rosto, enrugado, cinzento, transforma-se. Um brilhozinho nos olhos, cara de puto. Parece ser o esboço de um sorriso matreiro. São os seios, dois, brasileiros, e a mão que passa o sabonete e contorna contornos. Após o instante infinitesimal de gosto e vida, um novo apagão. Treme agora com frio apesar da toalha embrulhar o corpo. Esgota-se o dia no cadeirão, manta nos pés, a cabeça pendida para um lado. Televisão estridente e popular. A comida é sempre a mesma, mas não se dá conta. Ela é a melhor cuidadora do lar, vai ao pormenor.

PILOTO DE RALIS

  A última grande esperança. Depois da elevada expectativa em ser o melhor jogador de berlindes, que não se concretizou por um problema espasmódico da minha mão esquerda; depois de perceber que não iria ser o maior matemático do mundo, com as notas humildes que consegui nos anos primários; depois de chegar à conclusão que estava longe de ser um Adónis, de muito me olhar ao espelho e de aos quinze anos ainda não ter dado um único, que fugidio, que depenicado, beijo na boca; ser o melhor piloto de ralis da estratosfera, não sabendo eu o que era a estratosfera – que me parecia bem e adequado às minhas ambições -, era o lugar no pódio do mundo que me estava reservado num futuro próximo. Os meus tios alugaram uma casa ao ano, durante anos, numa aldeia chamada Sobreiro, a poucos quilómetros da Ericeira. Como eramos uma família solidária, eles pagavam a renda e nós os primos, os sobrinhos, os amigos mais amigos, usufruíamos essa comodidade. Então, quase todos os fins-de-semana íamos para

Só falo do que sei, porque o vivo sentindo ou porque o sinto sonhando.

  ** Quando estou a voar, vejo-o como uma forma natural de ser que sinto e sonho. Eu voo mesmo. E praticamente todos os dias, nem sei dizer se ando mais ou se voo mais. Voo muito e bem. Executo esse movimento, esse impulso, sem nenhum esforço, como sendo automático em mim, o que dá garantias que na realidade, seja ela qual for, eu voo. Por vezes faço voos rasantes às coisas e fico com uma sensação de que a qualquer momento vou aterrar numa cabeça de um transeunte distraído com o que vem do alto e que está a passear o cão sem esperar que algo lhe caia do céu, ou numa mesa de piquenique apetitosamente posta num jardim, onde acabo por estragar o almoço de um casal nova-zelandês que veio fazer Erasmus. Enervo-me e fico mais desajeitado, o que se reflecte na qualidade do meu voo. Raramente, quando estou assim não consigo ganhar altitude, apesar do esforço imenso que faço no que supostamente será bater as asas, mas a verdade é que nunca as senti, nem a bater nem sem ser a bater, e não me lem

A VIDA SECRETA DA MONTRA*

Que árvores são estas que não lhes sabemos o nome? São árvores da vida e basta esse nome. Na rua as árvores perfiladas acompanham um carreiro de prédios baixos, anos setenta, agora com estilo, com uma pala de cimento na entrada e um alpendre, que seria galeria aberta se os prédios tivessem outro porte. Pequenas lojas, com uma moldura de vidro, quadrada, a montra. Do outro lado da rua, vivendas familiares. Pela sua dimensão e porque quase todas têm as portadas e os estores meio-corridos, sinal que são casas habitadas, não escritórios e têm cães que ladram. Um subúrbio, um dormitório de pessoas normais. A rua não tem um café nem uma mercearia e os carros passam em fluxos, de manhã cedo a saída para o trabalho, ao fim do dia o regresso a casa. Também as pessoas. Durante a semana velhos que vão provavelmente às compras, ao centro de saúde, fazer análises, crianças ainda pequenas pelas mãos levadas para a escola. Igualmente em fluxos, de manhã adultos e jovens passeiam os cães, ao fin