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A VIDA SECRETA DA MONTRA*

Que árvores são estas que não lhes sabemos o nome? São árvores da vida e basta esse nome. Na rua as árvores perfiladas acompanham um carreiro de prédios baixos, anos setenta, agora com estilo, com uma pala de cimento na entrada e um alpendre, que seria galeria aberta se os prédios tivessem outro porte. Pequenas lojas, com uma moldura de vidro, quadrada, a montra. Do outro lado da rua, vivendas familiares. Pela sua dimensão e porque quase todas têm as portadas e os estores meio-corridos, sinal que são casas habitadas, não escritórios e têm cães que ladram. Um subúrbio, um dormitório de pessoas normais. A rua não tem um café nem uma mercearia e os carros passam em fluxos, de manhã cedo a saída para o trabalho, ao fim do dia o regresso a casa. Também as pessoas. Durante a semana velhos que vão provavelmente às compras, ao centro de saúde, fazer análises, crianças ainda pequenas pelas mãos levadas para a escola. Igualmente em fluxos, de manhã adultos e jovens passeiam os cães, ao fin

TODOS OS AMARELOS DO MUNDO

  O meu pai tinha sorte com os números, dizia ele. Uma vez, o meu avô esteve hospitalizado, não sei porquê, mas nada de grave, e ele foi visitá-lo. Quando saiu ficou com o número da cama onde ele estava a ecoar na cabeça. Era o número doze. Incomodado por uma fé súbita e muito intensa, palavras suas, comprou uma cautela de lotaria com essa terminação. Saiu-lhe o prémio grande e tivemos o nosso primeiro automóvel, um Toyota amarelo, com dois patos colados, nas laterais do capot . Já tínhamos uma moto (a minha) amarela, um capacete (o meu) amarelo e a agora um carro. Não sei se o meu pai pretendia açambarcar para si todo o amarelo do mundo, mas estava no bom caminho (e dos patos então nem falar. Penso que era para incomodar as pessoas, principalmente a mulher e os  filhos, ele gostava disso, apesar de lhe termos dito inúmeras vezes que não era uma boa ideia). Tendo uma viatura, tínhamos de lhe dar uso e fomos à descoberta do Algarve, a cidade de Lagos. Ficámos num quarto alugado, com ban

MÓVEL PHILIPS

  O meu pai, que trabalhava nas altas tecnologias do som e da imagem, a Philips, mas trabalhava pouco porque o que mais queria era divertir-se e fazer teatro amador, recheava-nos a casa com tudo o que havia de mais sofisticado: rádios-transistores de sensibilidade fina; televisores a preto e branco, no entanto panorâmicos e quase, quase a ver-se uma corzinha; utensílios de cozinha a darem com a minha mãe em doida, que mal sabia fritar um ovo e fazia questão ontológica de sublinhar essa sua posição, e um móvel tudo em um. Por ser o possuidor desse móvel tecnológico fui durante algum tempo o rapaz mais influente de todo o bairro do Restelo e asseguro que mereci e recebi deferências e estiquei-as o que pude, já que sempre soube que as oportunidades são poucas, aleatórias, e quando nos caem à frente de se esticar a mão e apanhar, ou estamos de olho aberto e aproveitamos, ou então, até que outra nos aconteça pode levar ciclos astrológicos e esses as vezes parecem intermináveis, e mal se s

A MINHA HONDA AMIGO

  Era uma Honda Amigo. Amarela. Motociclo com pedais a motor. Eu queria uma moto a sério, como as dos meus amigos. Quem tinha moto tinha estilo e namoradas, numa relação de partilha do banco, elas agarradas a nós, nós os seus heróis, até que todos crescemos, fomos às nossas coisas, deixámos de acreditar que podíamos continuar a ser heróis, tínhamos que ganhar a vida. Dávamos passeios infindáveis, polvilhados de prazer pela marginal da linha de Cascais. A bem do meu prestígio, vi-me obrigado a tirar os pedais, pintar a Honda Amigo com uma cor decente, azul-escuro, e pôr-lhe um tubo de escape estridente, na tentativa de fingir ter uma moto credível e desfrutar com elas esses passeios intermináveis, para cá e para lá, à beira mar. Não me ocorreu que os pedais no meu motociclo tinham uma razão de ser – ajudar o motor nas subidas – e tive alguma dificuldade em explicar às poucas raparigas que se interessaram pelo meu conjunto Luis-motoreta que se disponibilizaram a passear comigo, quando, a

O AR QUE RESPIRAMOS

Nasci num domingo, pelas sete horas da manhã sem ter nenhuma noção de que estava a nascer. Não me ouvi gritar em pânico com a exigência desconhecida de ter de respirar e não saber como o fazer; não me lembro de dores de expulsão do paraíso; se fiquei ou não encadeado com o excesso de luz, é experiência que não ficou registada. Nasci anonimamente e sem relatos pessoais, como penso que nascemos todos nós, a não ser que alguns, por mecânicas que não estou agora a apanhar, tenham tido consciência e participação nesse momento. Depois de nascer, não tive outro remédio que vingar, já que estava aqui, pelo que mamei o máximo que pude, reclamei quando tive fome, e dormi entre refeições, porque dizem que dormir faz crescer, e nisto as crianças levam, porque não têm outra opção, as regras à risca. Sempre me disseram que eu e a minha mãe estivemos às portas da morte naquele dia santo, às sete horas da manhã. A minha mãe aceito que o estivesse, agora eu, se ainda não tinha nascido como pude

O MEU AVÕ FOI UM FUNCIONÁRIO EXEMPLAR NA FÁBRICA PORTUGAL E COLÓNIAS

  As meias desirmanadas e as tampas de tupperware perdidas são grandes mistérios do universo. Ah, e porque escolhemos sempre a pior fila num supermercado para pagar? A verdade é que do início até ao fim da nossa aventura existencial acumulamos interrogações e dúvidas e são muito mais as incógnitas do que as coisas conhecidas. Os filósofos e os matemáticos podiam ajudar mas nenhum se dedicou à epistemologia das meias e das tampas. Assuntos tão profundos e importantes como outros de menor escala com que alguns pensadores desperdiçaram a vida e os neurónios. O meu avô paterno, homem rotundo, era um marialva. Não era nascido de família distinta, não era bom cavaleiro, não se ocupava de cavalos nem touros, mas levou uma vida ociosa e dissoluta e foi o que podemos chamar de mulherengo.  Era mesmo aquele tipo de pessoa que chega a irritar os que o rodeiam pela total despreocupação e gozo com que levava a vida, compensado em nós a parte madrasta desta tragicomédia, que não tínhamos culpa e

NO DIA DA RAÇA

Gosto de fardas. Deram-me um dia uns ténis brancos, uns calções brancos e uma camisola branca, de alças, com o símbolo da quinas colado no peito. Foi a minha primeira farda. Tive que a devolver. Já não me recordo mas para sair bem ensaiamos algumas vezes na escola, uma ginástica coreografada. Do que me lembro é que tinha frio nas pernas de canivete e sentia-me vaidoso. No dia a que chamavam da raça, eramos centenas de meninos, todos vestidos de igual, a cobrir por inteiro o rectângulo de relva verde do Estádio Nacional, executando essa coreografia em uníssono e sintonia, para as bancadas cheias de gente, todos virados para a tribuna para uns senhores de fato escuro. À distância não se distinguiam os rostos, era uma massa uniforme, opaca. Era na verdadeira acepção do termo, uma ginástica cueca, consigo agora ver à distância dos anos, já que efectivamente o equipamento estava mais próximo da roupa interior do que propriamente um fato de ginástica completo. Ginástica para o regime, mal