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O NATAL DO TIO VIRGÍLIO

  O tio Virgílio, que nunca soube da existência do poeta clássico romano e ainda assim conseguiu sobreviver e atingir o seu patamar de felicidade, era bombeiro na Companhia Reunida de Gás e Electricidade, nas bandas orientais da cidade, hoje um quarteirão moderno. Nunca apagou nenhum fogo, mas sempre que soava o alarme, conseguia vestir-se a tempo apesar da sua barriga, desproporcionada para a profissão de bombeiro, se bem nesses tempos, as exigências serem outras: um bom bigode, bem retorcido e colado nas pontas com brilhantina, e um ar sério e carrancudo, eram as condições de admissão.  Como não exercia a sua profissão, dedicava-se ao comércio de import-export. T inha boas relações com os das ambulâncias postais dos comboios, e dinamizava o negócio entre Espanha e Portugal. Caramelos, torrão de Alicante, bonecas sevilhanas, castanholas, mercadorias afins. O Tio Virgílio era nas festas natalícias, o responsável por amassar a massa das filhoses, trabalho a que ele dava importância, com

PAI NATAL

  Dávamos as mãos e lá íamos, pela rua Morais Soares abaixo. Eu pequenote, o mundo ainda a parecer-me maior do que é, imenso, eu minúsculo, percebi logo por essa desproporcionalidade como iriam ser as coisas no futuro. Era o passeio do ano. Da porta de casa ao início dessa rua cheia de movimento e lojas, atravessávamos o muro, alto, do cemitério do Alto de São João, o silêncio dos mortos, semi-obscuridade, eu cheio de medo deles, não sabendo que estando mortos não me podiam fazer mal, só os vivos. A Morais Soares, no sentido de quem ia, o nosso caso, é sempre a descer, e aos meus olhos poderia muito bem ser a Hollywood Boulevard , que eu ainda não conhecia, mas é a melhor comparação que me vem à ideia. Várias faixas de circulação automóvel, para cima e para baixo, as lojas iluminadas de tudo: camisarias, retrosarias, talhos, mercearias, casas de pasto, artigos indiferenciados, uma garagem automóvel, um mundo. Julgava que essa rua nunca mais acabava e que era a maior rua da cidade. Quan

A MINHA TIA

Ela costurava. Dia e noite, costurava sem parar. Costurava e sorria e dizia na sua maneira coisas bonitas e Amor. Fazia-o sempre que a visitava, devia continuar a fazê-lo mesmo quando eu não a visitava. Porque o fazia e parecia sempre feliz, quis imitá-la, também queria ser feliz. Comecei a escrever, por achar nessa idade ainda prematura para achar, que escrever era o que mais se aproximava a costurar, que poderia ter sido uma opção válida, mas escrever também não estava mal. Dei-me agora conta que está a passar na televisão o Natal dos Hospitais. E com esta imagem, em que temos estado descansados um do outro, ela emerge, toma conta da minha memória. Era o seu programa favorito do ano. Costurava sem pôr os olhos no ecrã pálido de cores fortes. Anunciava com segurança e sem erro os nomes dos artistas e cantarolava os seus êxitos. Eu, por ser miúdo e gostar dela, fazia deles os meus artistas favoritos, e como nunca tive jeito para cantar, e costurar parecia-me dificílimo ganhar o ritmo

O TORRÃO, PRINCIPES DE COISA NENHUMA

E seria um local belo se ela não tivesse de se levantar todos os dias da vida, as três e meia da manhã e passar o rio para a outra margem, quase um mar, e quatro transportes e correr sempre, para os apanhar, para apanhar com uma ponta dos dedos, sempre a escapar-lhe, uma existência miserável, não fosse a vontade de fazer crescer os netos-filhos do sufoco de uma existência assim, sem dignidade de cara lavada. Todos os dias, entre as seis e as nove para pôr a brilhar o chão da grande superfície, que lhe espreme as margens da subsistência, como faz ao produtor de batata, também desgraçado, vida dura a sua, para ganhar tostões. Podia ser um sítio belo de viver, se as crianças tivessem tectos onde não chovesse e boas janelas que impedissem as humidades e os frios a tomarem conta do espaço exíguo onde dormem tantos com tão pouco. E se houvesse água e electricidade e esgotos e as ruas não fossem pistas de lama e as crianças pudessem levar os sonhos até serem grandes, e tornar alguns ver

HÁ OU NÃO BALEIAS NO CÉU?

  Não há baleias no céu, ou então há, desde que se queira. Vira-se tudo ao avesso, sendo as mesmas quantidades de azul, passa-se o mar para o que está em cima e o céu para o que está em baixo. Quem não consegue imaginar um cenário destes, e acreditar na sua veracidade, é tolo, e nunca conseguirá dizer e ser credível, um poema simples e belo, tenha ou não a métrica certa. Nem a métrica o salva. Há, sim senhor, baleias que navegam nos céus e partilham o mesmo espaço de liberdade com todos os pássaros que venham por bem. Se não vierem, seja no céu ou em que meio for, o melhor é ficarem aquietados. Enquanto andamos nisto, passa neste preciso instante, não é mentira é a mais pura das verdades, estou a vê-lo, uma baleia voadora. No céu, à frente destes que a terra há de levar com pena minha, vejo-a a partir da janela do quarto onde tenho uma mesa em frente dela e escrevo coisas. E passa com a maior das bonomias, até parece que sorri, na comissura dos lábios enormes que tem. Afino a focag

DERVIXES RODOPIANTES

  Que nome dar a uma espécie de chapéu cónico, possivelmente em feltro, sangue de boi. Faz um efeito pouco comum mesmo que misturado anónimo, na multidão apressada num qualquer dia, numa qualquer rua central de uma cidade. Não só pelo que sobressai desse barrete hirto, que se vê uns bons centímetros acima do nível mais ou menos consistente das cabeças dos transeuntes, mas também por fazer um efeito incongruente, deslocado do sitio certo, sitio esse que se desconhece a morada. Em si, são dois chapéus, lado a lado e vão numa das direcções possíveis da rua, para baixo ou para cima, neste caso para baixo, rumo ao centro. Entram num edifício com uma fachada banal. No interior, pode ser tudo: escritórios, habitações, uma escola profissional, uma agremiação, um local de culto, sóbrio, sem pretensões de massas. Os dois homens que vestem os chapéus cónicos, estão de costas e dão a sensação de serem ainda jovens, pela forma como andam. Entram por uma porta não identificada. A porta preta, mate,

A ALDEIA DAS CASAS BRANCAS

  É uma casa em nada diferente das outras, poucas. Caiada a branco, as janelas e a porta com molduras amarelas. No espaço da porta, que em princípio é de madeira, está posta uma cortina de tiras de plástico de cores esbatidas. Protege dos insectos, também eles indolentes, subjugados pela intensidade do sol. Dentro, a sala, semi-escura, de paredes deslavadas, com a sujidade acumulada do tempo e das histórias a que assistiu ou não. Existe um balcão corrido a toda a largura da sala, em madeira, escurecida como a falta de luz suficiente que evita este espaço. Duas ou três mesas e cadeiras em fórmica. Atrás do balcão no que se pode chamar uma prateleira, copos para servir vinho e outros, pequenos, sinos, de bagaço. Uma máquina de café, uma peça histórica, já não funciona com certeza. Ainda atras do balcão, só visível a quem esteja encostado a este, uma pequena mesa forrada com uma toalha de plástico com flores, um candeeiro com fios de uma teia de aranha, um caderno com linhas, vazio, um l