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DIÁRIO DE DIAS FUTUROS - HABITANTES DO GRANDE DESERTO

  Estarei a sonhar? Sonho acordada? É real isto? Ou é uma realidade inventada pela minha mente que não está bem? Não tenho respostas. Habito num deserto. Um deserto a perder de vista. Se isto é viver, pode ser, mas será viver no limite do viver, onde quase viver não é mais possível, porque se está na fronteira. Um pouco mais e a vida deixa de o ser, para ser uma outra coisa, que não sei como chamar porque desconheço. Somos uma dúzia de famílias, somos nómadas permanentes. Sempre na procura de água, dos alimentos frugalíssimos que nos mantêm vivos. Ocupamos tendas que mal nos protegem das condições inumeráveis do clima. Inclemente, fatal. Viajamos em barcos que navegam em terra, nas areias douradas do deserto, locomovidos pelo vento. Direcionados por este quando enche as velas feitas de panos gastos. A água, esse bem tão precioso que não soubemos preservar, é o elixir da vida e é tão escasso. Umas vezes falta-nos, outras, em que chove torrencialmente durante dias, uma água salga

DIÁRIO DE DIAS FUTUROS - 3

  Uma vida sem opções é uma vida sem escolha. Não o quero. Não sei o que está para além do mar que vejo da muralha da minha ilha. Pode ser o vazio. Ou não. Corro o risco. O confinamento é sempre uma prisão, numa cela ou numa ilha. Não sou eremita. Deve ser muito difícil sê-lo. Conseguir equilíbrios, despojamento, amor. Tenho que libertar-me deste colete de forças, quero respirar, para viver, sentir-me vivo, devo conhecer outras paisagens. Agrestes ou acolhedoras. É a curiosidade, o motor da minha inquietação. Decidi partir. Apesar das circunstâncias, afeiçoamo-nos. É um amor suave, sem sobressaltos. Viver nestas condições não é fácil. Viver nunca foi fácil. Todavia, a nostalgia embota-nos o espírito quando resolvemos partir. Está em nós ser assim: agarrados ao conhecido, mesmo que o conhecido seja uma rocha rugosa e cheia de arestas, fustigada constantemente por ondas atrozes. Mal nos conseguimos agarrar, manter, mas quando perdemos essa coisa estranha a que chamamos lar, abate-se a

DIÁRIO DE DIAS FUTUROS - 2

  Instalou-se uma tempestade violenta. Está há dias assim. O céu assustador e escuro. O mar, um mar de trevas. É o nosso normal. Extremos. Não há estações do ano. Há imprevisibilidade. Quando as condições se complicam, vivemos debaixo de terra. Construímos túneis que ligam as casas entre si. Quando se pode estar cá fora ou por frio extremo, ou por calor impossível, estamos soterrados. Somos ratos. Como praticamente não vemos nada estamos a ficar como morcegos. Ratos e morcegos. Quero crer que estamos a desenvolver uma nova sensibilidade: a percepção dos objectos há distância. Como um radar. Não é o que dizem? que os morcegos têm essa capacidade? Nestes dias, que por vezes são muitos, em que estamos nesta letargia expectante, não lemos livros. Isso desequilibra-nos ainda mais. Quando estamos nessa espécie de catacumbas, praticamos o silêncio. De resto, desde que o mundo é como é, ou como o conheço, falamos todos muito pouco. Como vivemos num espaço reduzido, não temos necessidade da

DIÁRIO DE DIAS FUTUROS - 1

  Vivo a realidade, ou um sonho? Ou vivo num sonho uma realidade? Não sei responder. Tudo é realidade. Habito um castelo. É verdade. Um castelo-ilha. Explico: um castelo cujas muralhas contornam todo o espaço de uma ilha. Sabe-se pelo que aparentam ser datas, dados cronológicos intencionais, esculpidos nalgumas partes das muralhas, que o castelo terá mais de dois mil anos de existência. Tem também letras com pontos e alguns grafismos que parecem símbolos, esculpidos. Esses não sabemos o que significam. Da torre de menagem (só recentemente soube que essa torre se chamava assim) deste castelo avisto outras   ilhas há minha volta. Até onde a vista alcança. As ilhas são igualmente pequenas. Nenhuma tem um castelo, só igrejas. E casas, não muitas. Estas ilhas, sei-o, li, são a auréola do cimo das colinas. O que sobrou à terra depois da subida das águas. No mar que cobre praticamente tudo, sobressai uma ponte que não leva a lado nenhum. O tabuleiro, colapsado, de um lado e do outro, merg

FARTAMO-NOS DE BATER PALMAS

  Assistimos. Somos espectadores. Só podemos bater palmas, assobiar não. Patear nem pensar. Estamos sentados, com uma máscara que praticamente anula a linguagem do nosso rosto. Anula a identidade. Só os olhos. Tão subtis que são que levam a enganos. Sentados e afastados. Uns de outros. Aumentou a distância, instalou-se o desconforto. Eles falam, manipulam a palavra, fazem. Fazem tudo o que querem, não há quem os possa deter. As coisas estão feitas, eles fizeram e nós deixámos, distraídos ou desinteressados, que eles o fizessem assim. Que construíssem os seus sistemas, protegidos, invioláveis, imparáveis, insaciáveis. São os mesmos, estão mais do que identificados. Têm a lei do seu lado porque são eles que a fazem. Para si. Para os seus interesses. Para os seus amigos e eles. Nós batemos palmas ou desanimamos. Os que batemos palmas não sabemos porque o fazemos. É um automatismo. Os que desanimamos, somos tristes, melancólicos, gritamos em surdina para o ar e ninguém nos ouve. Se calhar

NOVELA RÚSTICA- UM FINAL TEMPORÁRIO

  Quanto mais se avança nas casas da vida, menos se dorme. Da ampulheta escapam-se entre os dedos, os grãos de areia do tempo. É assim, para aproveitar o que resta, ou a correr atrás dos prejuízos, que se dorme menos. Desde que António trouxe para casa o amigo eremita, resgatado a mando de Deus num sonho intenso que teve, a aldeia de um momento para o outro, de vazia, ficou cheia. Dois poucos, três muitos. Pedra a pedra, tijolo a tijolo, as traves de madeira, todos os espaços, de dentro e de fora, encheram-se do rodopiar livre e palpitante das frases construídas nas intermináveis conversas que os três amigos tiveram, sempre à volta do fogo, a recuperarem saudades antigas, anos perdidos, agora guardados na sua memória colectiva. O Casimiro estava feliz por ter voltado mas sabia - ele e os amigos -, que seria uma estadia curta, estava em tempo de descontos, já de saída. Não estava assustado, estava preparado. Viveu tanto tempo sozinho que o teve mais do que suficiente para se amigar

NOVELA RÚSTICA - O EREMITA

  ** Nestas terras esquecidas há um personagem que ainda não foi apresentado. Vive muito para além do fim do caminho que termina na aldeia. Vive isolado, num casebre sem condições. Dizem que é um eremita, que não professa nenhuma religião senão a solidão. Chama-se Casimiro, é uma boa alma, essa é pelo menos a opinião que Deus faz dele. No dia em que morrer vai directamente para o paraíso. São Pedro já foi avisado para não fazer perguntas. Aos filhos, ama-se por igual, mas a uns mais que a outros e assim são as alminhas, aos olhos de Deus, todas filhas suas, mas algumas a receberem um carinho mais intencionado, a mostrar preferência, assim as abençoa o Senhor. O Casimiro, ou melhor, a alma que o habita, é uma filha predilecta do Criador. Este a nada, nunca, lhe disse não. Basta um pedido do Casimiro, daqueles pedidos para o desconhecido, mais um desabafo, que se atiram para o ar, que o Casimiro já se sabe não é de crenças, logo o Senhor a atendê-lo. Assim são as coisas, como em tu