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NOVELA RÚSTICA - IIII

  O dos CTT ainda não foi referido, porque o momento dele só chega agora. Numa primeira impressão: um homem que foi talhado para a conversa. Talhado seria, se alguém o tivesse esculpido, não sendo assim, tendo nascido de parto normal da conjugação de uma relação carnal que deu ânimo a uma fertilização que na posteridade viria a desembocar em parto de ser humano, estreito e escorreito, ele fez-se a si mesmo, moldou-se como barro, nas circunstâncias e acontecimentos, nas experiências e dissabores, das pessoas com que se cruzou e descruzou, a acrescentar, os créditos familiares, a que chamam herança genética. Toda essa licenciatura deu-lhe para ser um bom conversador. Sabemos que ele é arauto das notícias, boas e más, a televisão ambulante, na aldeia de dois moradores não há televisões. Radio sim, roufenho, com a antena partida desde que há lembrança da sua existência e tanto o António como o Quim, só lhe dão uso aos domingos para ouvirem o relato da bola: um do Benfica outro do Sportin

NOVELA RÚSTICA - III

  Hoje, é como se fosse o primeiro dia da criação. Homens e alimárias despertam para as suas rotinas recarregados de esperança, a ilusão mais persistente com morada certa na cabeça das pessoas. Todos os dias, nas primeiras horas das manhãs, límpidas ou carregadas de nuvens a agoirar tempestades, os homens despertam convencidos que hoje é que vai ser o dia, vai acontecer o milagre: os que são anónimos vão ser reconhecidos por uma coisa qualquer, sua, e ganham fama e outros respeitos e já podem morrer satisfeitos porque vieram ao mundo com sentido; os que são conhecidos, vão ter ainda mais admiradores, que lhes estendem o tapete vermelho, para que desfilem emproados de gente importante, e também já podem morrer porque foram eles que mudaram o mundo. Vai pois ser o dia de todos os milagres, neste caso para quem tem um deus. Para os que não, vai ser o dia de todas as sortes. E o desenrolar de todos os dias é assim: começa-se a acreditar que vai ser diferente e termina igual aos anter

NOVELA RÚSTICA - II

  Num pequeno universo este, de personagens humildes e a contarem cada um meio voto de um voto inteiro de cidadão intitulado, não que estes não o sejam, mas andam esquecidos num sítio anónimo, num tempo que já não existe, sem opinião formada que influencie os eixos da terra, o Manchas, grande cão este a aproximar-se mesmo dos limites mínimos para ser humano, é o mais humilde de todos: Primeiro, por natureza própria, depois por ser cão e não ter voto na matéria - não fala a língua do António está excluído de igualdades- e em não falando não é gente e por consequência e inerência, vale um quarto de voto, o que é o mesmo de valer um por inteiro, nada. Como se falar fosse critério. A ser, nem o António, nem o desdentado e a custo o dos CTT, entrariam na categoria de homens, mal sabem eles o que dizem e muitas vezes como o dizem: algraviadas, é o que é! Consciente disso, o Manchas, não emite opiniões, conformando-se com as decisões do dono, soberano e senhor de poucas posses que incluem p

NOVELA RÚSTICA - I

  Era alegre no seu maneirismo de o ser porque na realidade não há outra forma de entender e descrever a sua alegria exuberante. No tudo e no nada, nas pequenas e nas grandes coisas, via motivos de alegria, de tal forma que quem não o conhecesse poderia encontrar um traço, uma ligeira brisa de loucura, muito ténue, que se lhe perdoava, porque como todos os loucos simpáticos, era encantador. Sendo a alegria uma banalidade, vê-se por aí muita gente alegre, assim como triste, e também melancólica, um meio termo das duas, não é comum uma pessoa passar por todos os desafios que a vida apronta com um sorriso esclarecedor nos olhos e uma ligeireza nos passos que se dá, sem que a fraqueza da tristeza o acabrunhe uma vez por outra. Era essa a sensação que António imprimia nas pessoas, conhecidas ou desconhecidas. De tal forma que alguns, os mais desmagnetizados, a quererem escapar das forças gravitacionais que nos prende à terra, por serem assim, consideravam que ele regulava de menos, ou s

PARAÍSO? SEMPRE EM FRENTE, ALENTEJO.

«C`um caneco», diz a rã a coaxar, saltando em esforço sobre o alcatrão escaldante da estradeca. Até que chegue ao outro lado, bem tem que vociferar. Uma lontra, aos seus afazeres, caminhando nos vagares da região, investida de toda a calma do mundo – pressas para quê, se vamos todos morrer. A lontra passa diante de nós, quatro, cinco metros, omite-nos, a curiosidade dela não é mútua. Uma águia-calçada, ou pequena, ainda assim águia, descreve círculos, planando. Espera pela sua oportunidade e não vai falhar. Não é comum ver uma rã – na cidade –, águias só domesticadas, tristes figuras em estádios, lontras é mesmo impossível. Quem diz rã, águia e lontra, diz coelhos, são muitos. Assustadiços, disfarçam-se com a nossa presença de coelhos-pedra, congelados, estátuas, e quando não aguentam mais, porque os coelhos são de natureza inquieta, dão grandes saltos disparando em velocidade furiosa a esconderem-se nos silvados. Há também cobras, que não se desviam da rota, presumidas, se

A REDUNDÂNCIA DO TEMPO

Passaram dez anos desde que se suspendeu a contagem do tempo. O tempo deixou de ter sentido. O futuro perdeu todo o interesse, previsível, aborrecido, para quê continuar a contar o tempo se ele não nos leva a lado nenhum. Fechámo-nos, todos os que podemos, em casa. Os que andam na rua, são os novos escravos. Os que têm que estar na rua para que isto continue. Muitos deles pagam com a vida, pagam com a subtracção dela, mas não têm escolha. Eles morrem para que nós, os que estamos em casa, continuemos a viver. Num tédio destes, para quê continuar a contar o tempo. Não vale a pena. Este mês seria o mês dos santos que o povo gosta, mas com a peste, todos os santos fugiram. Foram para o paraíso, onde estão seguros, protegidos de nós. São momentos assim que nos dão a ver o que antes não víamos: a importância de algumas coisas, a redundância de outras. Sem santos, a sardinha deixou de fazer sentido, é um peixe como qualquer outro. Os manjericos são inúteis. As noivas e os noivos passaram

SEXAGENÁRIO

Era miúdo e o mundo era todo muito grande, enorme, de dimensões desproporcionadas à minha pequenez, e o meu avô - só para nomear esse exemplo - tinha sessenta anos e eu considerava-o terminado e velho. Dava-lhe a mão, íamos passear pelas ruas e eu dava-lhe a mão com toda a pouca força que tinha, para o proteger de uma queda ou um acidente, porque era velho e fraco e eu pensava nisso, enquanto passeávamos, e tinha pena. De mim e dele que o ía perder mais tarde ou mais cedo (quarenta anos depois…). Frequentámos muitos jardins depois disso. Hoje cumpro essa idade e não me sinto velho, nem estou nada pronto para encarar a oferta de uma morada eterna e definitiva, a menos que seja por obrigação. Tenho sonhos, muitos sonhos, planos, tantas utopias, continuo a ser um menino. Vejo-me dessa forma, e gosto. O que pensará de mim o meu sobrinho Óscar, quando afaga a minha barba a caminho de ser branca, quando me dá a mão (as mãos não mentem), e eu reparo que ele repara com curiosidade que as