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Mensagens

BENEDITA E MÁRIO

A senhora Benedita é um doce de pessoa. Aquele tipo de ser, indiferentemente do género, de quem se gosta desde o primeiro momento. Benedita foi mãe solteira e assim se deixou ficar, não lhe fez falta ter mais família e muito menos a figura de um homem. Por nada em especial, nem antipatia sua, mas também não uma simpatia tão forte que a levasse a procurar e aceitar a companhia de um. O Mario, o filho, preencheu todos os espaços e bastou. Apesar de se sentir na pele de uma mulher feliz, se se sente isso na pele, sem outras ambições que as por si realizadas, pode dizer-se que não teve uma infância risonha. Começou a trabalhar desde que se lembra de falar, a levantar-se de madrugada para ordenhar as cabras, algures numa serra longe de tudo, filha de pais pobres. Nisso não sendo muito diferente da maioria das crianças da sua geração, descontando as privilegiadas, essas poucas em número. Como eles morreram cedo de mais para ela, mas quando estava contado vir a acontecer para eles, viu-

JUNTAR SONHOS

Naquela tarde, talvez por ser a tarde que estava marcada, percebi que não seria possível. Não recebi nenhum aviso de ninguém, o meu corpo não experimentou um estado físico diferente do habitual. Para além da sua rotina de corpo a funcionar sofrivelmente bem, não houve premonições, fenómenos de poltergeist. Nada. Estava como tenho estado nos dias anteriores a este, e espero que os próximos e os que mais tenham de ser, assistindo mansamente a um destes programas das tardes de televisão, dos que desfiam episódios menos risonhos da existência de todos os indivíduos. As coisas boas não passam na televisão, só misérias. Mas as pessoas gostam, é o que pedem, atestar os níveis de tristeza, com as experiências dos outros, cópias repetidas das suas.  Não abrem mão de ser um elo dessa grande corrente universal da condição humana. Fazem cadeias de amor por esses episódios baratos, rebuscados, quando não fazem nada pelas coisas que realmente importam, queixam-se, é só. Estou as

HORA DO ALMOÇO

Anunciou-se, espampanante. Encheu a casa de dar nas vistas, com um vestido caído a acompanhar as linhas do corpo, mas ao mesmo tempo largo, desimpedindo os movimentos, deixando-os à solta, uma linguagem corporal exuberante a sua. Rosa forte, a cor do vestido. Sentou-se na mesa que lhe indicaram. Estava irremediavelmente alterada com a sua entrada, a tranquilidade da sala. Antes pacata, sem história, clientes habituais a comerem pratos habituais baratos e por isso menos bons. Deixa-se para lá a qualidade dos pratos, agora, há uma tensão de olhares, de posturas corporais de atenção, os clientes na sua maioria, e os empregados todos, aguardam. O que aguardam eles? Que ela continue a representar, uma artificialidade, ou um essencial de si: encenando o seu verdadeiro. Pediu dois croquetes que são desenxabidos e colam-se aos dentes. Comeu-os com uma delicadeza no detalhe, de os agarrar educadamente, levar à boca com ponderação, trincar pedaço a pedaço como se fossem beijos ca

MARVÃO

Marvão está mais perto do céu, para o bem e para o mal. Para o bem, quando num dia despejado, sereno, ensimesmado de si, estende a vista sem esforço maior, até uma enorme longuidão. Agarra os contornos da mais imponente serra continental, maior, que temos: a Estrela; noutra direcção vai-se quase até ao mar, pelo menos a saber-se que ele está ali, prestes a chegar ao alcance da vista; noutra, os campos lhanos, meio monótonos, a tomarem nos meses de verão as cores de uma extensa mantilha doirada, como alguém disse do ilustre Branquinho da Fonseca, o homem das bibliotecas itinerantes da Gulbenkian: “ a paisagem era amarela e chata; o poeta deitou-se na paisagem e ficou amarelo e chato ”; outra direcção ainda, terras de Espanha, o estrangeiro que temos como nosso vizinho, os melhores que poderíamos ter, irmãos. Para o mal - que nunca fica esquecido-, em dias de tempo carrancudo, recebe a borrasca antes das terras baixas, águas por vezes diluvianas, primordiais, ventos sibilinos,

COMO É O AMOR?

É como pescar. Lançam-se as sortes, aprende-se paciência, entende-se a essência do acto de esperar, pratica-se a atenção sem compromisso, atinge-se o conhecimento: da cana de pesca, do carreto, da linha, do anzol, do ambiente água, do peixe que acabará por não resistir à tentação da gula pela voluptuosidade do isco oferecido, deixando-se pescar. No entanto, o acontecimento que marca o sucesso apoteótico do pescador, não é só esse desenlace final. Representa a soma de tudo isso, dos dias corridos de insucesso, da espera, da atenção, até que muda a sorte, como o vento, e volta-se para casa anafado de vaidade e orgulho, considerando-se o melhor pescador do universo. É verdade, agora que se diz, é como o vento. Caçar a vela num barco, apanhar a brisa no ângulo certo, que infle a primeira e se inicie o movimento de propulsão, aproveitando o sopro desta, fazendo cavalgar o barco as ondas, ou melhor ainda, voar rasando a espuma das mesmas. Tanta tentativa, tanta atenção, chega

CRIANÇAS DÃO-SE BEM COM POLÍTICA

Na irrequieta preocupação sobre amanhã, o mundo de uns anda absorto noutras coisas. As crianças gritam, mal se ouvem, sobrepõe-se o ruído dos carros e as buzinas. Na inquietação que perturba, andam muitos ocupados fingindo que nada está a acontecer. Crianças berram, daqui a nada estão de castigo. No desassossego, políticos dizem que foram os primeiros a falar nisso, Fazem chinfrim. As crianças, desordenadamente mas todas, começam a tocar indiferenciadamente as campainhas das portas. Pedem atenção. Alguém chama policias para policiarem todas as campainhas das portas. Faltam. Algumas continuam a tocar sem interrupção. Politicos ajudados por votantes adormecidos por vales de benefícios materiais míseros, dizem que o mundo amanhã vai ser muito melhor. Asseguram a sua protecção, fazendo figas debaixo da mesa. Crianças que não veem nem ouvem as notícias dos jornais, mijam todas ao mesmo tempo e cagam as fraldas e as cuecas. Os sistemas educativos não têm res

PALAVRAS CRUZADAS

Ela emana de si uma concentração total no que está a fazer. Pode-se mesmo dizer que vive para isso (não em estado permanente de concentração que ninguém aguenta). E quando se vive para uma coisa, dá-se o melhor, já que se canaliza a força da vontade para a realização desse amor. Ela é um bom exemplo.   O que faz é muito sério, chama ao silêncio, pratica uma actividade cerebral, não abre mão de ruídos nefastos, um burburinho que seja. Só que ela, esta senhora, tratemo-la como se manda, vive uma contradição: se por um lado tem de dar o seu melhor, no que faz e gosta, por outro, para o fazer, necessita da companhia dos outros. Só que o que faz e a companhia parecem ser incompatíveis. Ela não consegue estar sozinha, mesmo passando como passa dias corridos inteiros, rodeada de pessoas, não falando com ninguém e ninguém com ela, e ainda que falassem, ela mantém-se tecnicamente em estado de solidão.   Neste momento apresenta-se o problema, que é nosso, porque somos nós que