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Mensagens

A PALAVRA

Regularidade plana de terreno, pontuada escassamente por árvores, tão juntas entre si, que parecem proteger-se de algo, talvez do vazio   que as rodeia, a perder de vista. Arbustos rasteiros e poucos, ali nascidos nem por quê, nem para quê. Neste cansaço pontuado pelo vogar pairando lento de uma ave de rapina, a ajeitar pelo olhar acutilante o momento fatal, do golpe que há de praticar sem clemência, e no entanto nada de mal faz senão a sobrevivência do dia, aproximam-se ao longe, ou não tão longe mas dando essa sensação pela intermitência das ondulações de luz que emana da terra nestes dias de muito calor, duas figuras, dois homens, aparentemente, calcula-se que o sejam, não é ainda o tempo das almas penadas, que se passeiam em horas crepusculares e frias, esquivando-se de contactos. Existe uma estrada por onde eles vêm, estreita mas estrada. Passam viaturas aleatoriamente passando indo nas suas direcções pessoais, desconhecidas, que não poderão entrar na história. Qu

O CÍRCULO DOS DIAS

Os dias eram redondos e apesar de alternarem rodeando na luz e na escuridão, repetiam-se sempre iguais. Assim tudo continuaria inalterável não se desse o caso, um acaso talvez, de os homens e outros animais inteligentes terem dado conta e atenção ao facto de os dias serem assim, por vezes monótonos e previsíveis. E colocaram questões. A partir desse instante, tudo se alterou, tomando os dias nota de que andavam a ser observados. Não sendo por natureza desconfiados, envergonharam e num esforço de simpatia, fizeram-se elípticos, alongando-se, o que alterou a sua alternância sempre igual. Os observadores, críticos que são a tudo, ficaram com a ideia de que o tempo dos novos dias esticava, mas isso não era verdade: as horas, os minutos, os segundos, eram rigorosamente os mesmos. A vantagem dessa original configuração geométrica era só uma, mas fundamental: os dias deixaram de ser monótonos por andarem sem parar às voltas e voltas. Passaram a andar esticando-se, o qu

de novo GEOGRAFIAS

Copenhaga, Tóquio, Jamaica, Europa, Shangri-la. Enumeração aleatória de lugares e regiões na geografia do mundo, identificáveis com um dedo apontando o mapa  mundi , ou a fazer uma roleta russa num planisfério. Excepto o último, um paraíso utópico, só reconhecível em imaginação fértil. Na geografia de uma rua cabe todo o planeta. Dá-se-lhe a volta em dez minutos, sem sair dos fusos. Isabel percorre, num vaivém contínuo e incansável, nómada errante, essa pequena rua que junta todos os lugares. Quase ridícula. Resgata marinheiros em compasso de espera em terra alheia. Salva-os da monotonia do tempo que está em suspenso, antes de mais uma partida, sem terem para onde ir, já perderam há muito o coração. Oferece-se, não se faz poupada. No calor da refrega apressada, em lençóis de limpeza duvidosa, partilhados com outros ocupantes minúsculos residentes habituais, por vezes, uma centelha de calor atinge o outro, entremez na solidão dos afectos, ignição primordial. Nã

MÊS DE AGOSTO

Atropela-nos, com os seus joguinhos e perversidades inesperadas. Ficamos colados, à parede, ao chão, ao tecto. Magneticamente colados. O processo criativo mete os papéis para o fundo de desemprego. Em privado, a tentar recuperar todas as séries do netflix dos últimos anos, quando se odeia televisão,mas entrou a melancolia portas adentro para tomar conta do apartamento que não é aspirado há semanas. As desventuras comezinhas tomam conta do quotidiano. Escrever não vale nada, quando a vida no seu esplendor podre, nos atropela assim.

O SECRETÁRIO DE ESTADO

O secretário dormia, e até parece que ressonava um pouco, numa cadeira, espreguiçadeira. Numa pequena mesa ao seu lado, um copo com uma bebida que pode ser uma caipirinha. Porque não? O secretário passa “pelas brasas” e tem para além dos pés descalços, na areia, um livro que dá a sensação ser um romance, pousado, inerte, por abrir, no seu regaço adormecido. Enquanto ist o, num mundo que não é o seu, a classe que ele tutela, faz greve, já vez muitas, anda a fazer tantas. Ele não ouve esses ruídos incómodos, está na praia. As pequenas ondas do mar, apesar de pequenas e bonaçosas por ser verão, emitem ao darem o seu último suspiro na linha da areia, um ruido constante, muito relaxante, belo mesmo, e impede de se ouvir seja o que for. Muito menos se for um longínquo e meramente incomodativo esgar de gente imprópria, com interesses corporativos. Ah, as férias! Ausentamo-nos de tudo, carregamos baterias, a vida é madrasta o ano inteiro. O secretário balança agora

O SITIO DE MELIDES

Melides é frique, que bom, já há militantemente poucos. O hippie chique e a esquerda caviar são dois braços da mesma vibe mas não emitem aquele frisson de uma liberdade quase anárquica. Melides traça a linha da fronteira do litoral alentejano, a sul. A norte, veraneiam os intrinsecamente betos, os que juntam o tratamento blasé na forma como se dirigem às pessoas na pessoa do “você”, aos chinelos Vuitton, com os pés ligeiramente encardidos, às imensas pulseiras e colares sei lá, e que passam férias, em suas cottage de colmo e mirras, na Herdade das Herdades, a que já foi a mais do que tudo, que agora se desvanece em talhões cada vez mais pequenos, ainda assim caríssimos. Melides é frique mas vai deixar de o ser. Não é uma aldeia nem particularmente bonita, nem particularmente feia, nem tem (ainda) restaurantes particularmente dignos de estrelato. Mas tem restaurantes estrambóticos, inesperados, dados a excentricidades decorativas. Em vez de uma estátua de um ilustre co

OS ARES

Apanhava ar. No ângulo que fazia a esquina do murete que delimitava a casa, antiga, ainda com telhado de colmo, num barraco onde mal cabia ele, ali estava, velho, sentado num cadeirão de madeira, onde se percebia existir uma almofada, igualmente velha, que lhe ampara as costas. Diz-se apanhar o ar, porque é o que ele faz. Não está ali para ver ninguém – poucos, muito pouco se passa –, as vistas, nenhumas em especial. Está para arejar, isso mesmo, sair de casa, onde uma pessoa se pode encerrar, ir-se encafuando, distrair-se de si e do mundo, e nunca mais sair, encarquilhando lenta e inexoravelmente os movimentos, as vontades, o corpo, envelhecendo o espirito e despedindo-se da alma. Aquele cubículo, onde jamais caberia deitado, só mesmo sentado, tem uma porta, que está aberta, e ele, ocupando todo o espaço do espaço exíguo desse remendo de esquina de uma casa, é visto por este transeunte ocasional, visto pela metade (só se lhe vê a parte direita do corpo que areja, a out