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Mensagens

BRINCAR

Ontem foi a véspera de hoje. Eramos crianças e brincávamos, coisas datadas, de época, jogos de rua, na rua, o espaço que marcava o centro do mundo, fosse numa aldeia minúscula e remota de nome, fosse num bairro grande da cidade capital. Brincávamos e eramos eternos, inesgotáveis, felizes, sendo pobres ou ricos, ou simplesmente remediados, a maioria de nós. Ontem as meninas não brincavam com os meninos, havia diferenciação de género. Mas curiosidade, e tentativas. Não era pelo género, era por ser assim. Ontem. Gritávamos, fazíamos alaridos, nódoas negras, arranhões, rasgávamos as calças. Eramos felizes. Imortais. E as duas coisas, mesmo os meninos que ficam somente à janela, atrás do vidro que nos separava, vendo o andamento do mundo, nós, porque não podiam participar dele, decisões muito pouco sensatas das   mães ou sabe-se lá de quem não os deixava ser meninos, na sua altura de ser. Erámos cruéis com eles os mariquinhas e brincávamos, fazendo galos na cab

OPINIÕES

* Em tudo se via o belo e o feio Em tudo havia uma conspurcação Ainda que mínima De um pouco ou muito de um e de outro e de os dois juntos ou separados. Não parece ser e haver Na natureza Um espaço inteiramente preenchido e em absoluto Do belo ou do feio. Com isto, esta indefinição, As avaliações das pessoas ficaram subjectivas. Tomam o belo e o feio por coisas suas, Ditam das proporções e quantidades De cada um. E é nesse momento Que o mundo se desentende. Menos os animais que não têm dúvida É tudo  belo e feio e assim deve ser, Mas cada vez há menos animais . *Adam and Eve in paradise - Flemish school

Niska

Afeiçoamo-nos aos animais e depois é isto: sofremos. Com as pessoas a mesma coisa. Mas afeiçoar é bom, e tudo tem tempo marcado. Afeiçoar, quando é a sério, é uma imensidão de emoções e sentimentos. Intenso e tanto. Adaptamo-nos, adequamo-nos, acomodamo-nos, modelamo-nos. Estamos a falar da construção do amor. É isso que é tão bom, e também num momento - inevitável - que nos leva a sofrer tanto. Afeiçoar é afinal um amor tranquilo, dos mais difíceis, dos mais desejados. Foi bom amar-te e na maior das improbabilidades afeiçoamo-nos tanto que todos os mimos que nos fizemos ficaram a ser poucos. Um dia destes retomaremos com certeza essa actividade deliciosa de te massajar a barriga, numa outra paisagem qualquer, seguramente com muito mais tempo, talvez todo, para nos dedicarmos convenientemente a esse prazer que temos os dois.

A PRIMAVERA A DAR NOTÍCIAS

* E então, fez-se um dia, do nada, aparecido assim sem  estar à espera, arrasadoramente completo de todas as coisas necessárias a um dia bonito: luminoso, caloroso, deixando ouvir as melodias das esferas. Tudo de fundamental está presente neste dia. As pedras que se pensam sempre duras, amolecem pelo calor que emana do dia; as flores, as plantas, seres solícitos e disponíveis para tudo, a simpatia, abrem-se lascivamente de pétalas e folhas, absorvem o ambiente criado; os animais selvagens e domesticados, fizeram uma pausa no seu quotidiano de sobrevivência e perigos.; os homens, tiveram e não seria de esperar outra coisa, atitudes dúbias: uns a apanhar sol tendo tomado a deliberada intenção de serem felizes; outros, indiferentes, ou desconfiados, cometeram as maldades habituais em si. Os deuses piquenicaram, tendo convidado os parentes, os anjos, os arcanjos, e fizeram muito barulho, arrotaram bastante e acabaram por poluir as nuvens, porque são seres superiores desliga

COISAS DO AMOR

Vá, avança, vamos, esboça para mim esse quase indetectável movimento de aproximação, o sinal de que é também a minha vez de avançar, desempenhar a parte no papel que cabe de te amar, e que o saibas tu, sem equívocos, o amor que me obriga-prazer, magnetiza colando-me, dois, um, a ti. Quando tomares a decisão de sinalizares a tua dica para a minha dica de entrada na cena nossa, abrindo a possibilidade de realização do movimento de amor estratosférico que esperas de mim, fá-lo sem peso de nada obrigatório, um impulso sem razão, mas acontecido unicamente para nos celebrarmos os dois, na invenção do amor.   Eu, nervoso e momentaneamente desentendido do controlo de mim, darei a novidade ao mundo, para que se saiba sem fronteiras, e porque sou de anunciar a qualquer pretexto, na maior das exuberâncias de excêntrico que sou. Direi que me amas e eu a ti, e pela simplicidade, parecendo repetitivo o anúncio desta cumplicidade única a dois, desde sempre dos homens existirem,  

A MULHER, O JARDIM, UM LIVRO

Regresso ao local que é um jardim público, onde uma mulher lia livros no meio dia dos dias. Digo lia porque não a vejo a ler sentada no beiral que delimita o ponto norte do jardim. Esse facto desequilibrou a minha tranquilidade   e o prazer que tenho em frequentar o jardim. Nesta ausência, supõe-se tudo: desistiu de ler; cansou-se do beiral e de se sentar nele; foi despedida e está no fundo do desemprego; está de baixa por depressão provocada pela desmotivação de ser funcionária pública; entregou a alma ao criador apesar de não ser idosa, mas a morte não se anuncia. A imaginação de uma pessoa normalmente imaginativa, consome mais tempo do que o total do tempo consumido nas tarefas do real na duração de um dia. É um encadeamento de pensamentos fantasiosos a seguir a pensamentos fantasiosos.  Pessoas como eu vivem no sonho e não se dão conta. A mulher que lia livros, conferia a identidade a este jardim. Era a sua assinatura, mesmo para a maioria dos utilizadores

OPERÁRIO DE FRASES VÃS

Tenho a desgastante tarefa de escrever frases inúteis. Serão lidas, com sorte, uma única vez. Depois lixo. Escrevo as frases mais efémeras que existem. O propósito é esse, o de escrever frases pálidas para serem lidas uma só vez. No princípio pensei que não, mas desenganei-me cedo. Neste trabalho escusado, não sobra tempo, amanhã pedem-se outras frases feitas, e é sempre assim, até secar a fonte, ou vir a enlouquecer, uma forma de bater a porta com estrondo. Alguém tem que fazer este trabalho, há muitos que se puderem arrastam a minha honradez para a sarjeta para ocuparem esta cadeira, ainda por cima desconfortável. Basta um pequeno descuido, um titubeio , para alimentar o rastilho dos equívocos. Logo se inventam enredos, com personagens falsos e boas mentiras, e correm connosco, desta profissão única dos fazedores de frases inúteis. Depois, não se arranja emprego em lado nenhum. É voltar para casa dos pais se ainda existirem ambos: os pais e a casa. Os tempos não estã