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O HOMEM QUE QUERIA VER O MAR - QUANTO TEMPO É O TEMPO DE UMA VIDA A DOIS?

No intervalo   entre a guerra que viria a seguir, que os protagonistas, estes, não sabiam que viria – assim pula a fazer futuro a história dos homens:  guerra sobre guerra, com intervalo entre duas para fumar um cigarro, ou simplesmente respirar esperança – a Cústodia e o Tertuliano amigaram-se.  É correctamente assim, e é muito mais bonito do que dizer “juntaram-se”, ou mesmo “encostaram-se”, termo este que pode desencaminhar para outras interpretações, e é rude. “Amigado” conceito interessantíssimo, é uma não figura do Direito civil, vista como pecado aos olhos castos dos vizinhos, todos tão crentes, tempos de muita e boa fé, apesar de cada um à sua conta e número, transpirar pelos porozinhos da pele, o seu viciozinho privado. Levam a missa inteira de trás para a frente e no sentido contrário, só porque a decoraram de tanto a dizer. A seguir a preceito o que ela diz, é uma outra história. Um corropío constante, a toda a hora do dia, de benzas a Deus, aos santos e à

O HOMEM QUE QUERIA VER O MAR - FADO

III Custódia cantava fado , Eram todas, à sua maneira, a maneira dos olhos que as viam, bonitas. Mesmo a que tinha um olho de vidro no lugar de um olho que viu regaladamente o mundo até ser vazado por um gato, sem culpa deste. Lindas, nas perspectivas e ângulos em que foram vistas e algumas vezes admiradas, nos seus anos de glória e infinito, que todos têm, até que se esgotam. Elas, os olhos que as olham, e o tempo sempre a passar. Era a Maria, a Florinda, a Silvina e a Custódia, a fadista desta história. O que é o fado? A ópera das pessoas anónimas, a que ninguém assiste formalmente sentado nos camarotes confortáveis dos teatros. Os que assistem não o fazem nessa condição, são eles também participantes, actores da vida real, encostados num balcão sujo de um tasco obscuro, com as paredes degradadas e escorrerem melancolia, num pingar constante, um jorro que nunca estanca. Humidades que adoecem os ossos e as almas que os habitam. Tristeza-prazer, lágrima-sorr

O HOMEM QUE QUERIA VER O MAR - TEMPOS DE GUERRA

III Um paquete de luxo, orgulho da nação de marinheiros e empregados dos serviços terciários. No dia 26 de Maio de 1944, arredondando por volta da meia-noite,   Tertuliano está na ponte, a cumprir o primeiro quarto. É praticante de piloto, tem um chapéu de pala, e um galão dourado no punho do casaco muito azul escuro e grosso. Fuma reflexivamente um cachimbo, o seu companheiro intimo. Deixou de ser crédulo e uma “amélia”, é um jovem homem respeitável, em início de carreira. Parece-lhe já distante, a profissão de   pastor e de marinheiro de águas doces que foi ontem, mas não, é um intricado contínuo,   tudo embrulhado na mesma, em camadas, a vida é um mil-folhas. Naquele momento à beira do meio da noite, Tertuliano não pensa nessas coisas, observa a escuridão e as estrelas, está concentrado por inteiro na condução segura do navio. O céu despejado de nuvens e o mar meio adormecido prenunciam uma noite calma. Tremeluzem milhões de estelas e o piloto identific

O HOMEM QUE QUERIA VER O MAR - LÁ, NO SÍTIO DE CASCAIS

II Foi assim que o Tertuliano , Fez o baptismo de uma carreira trágico-marítima, a sua história pessoal, numa pequena embarcação colorida no entanto tímida, com o nome “ meu coração” pintado na proa, escrito por mãos analfabetas, que copiaram tremidamente a grafia escrita numa folha de papel, por alguém com uma grafia pouco convincente, tremida igualmente. Os barcos são um nome feminino que se diz no masculino impropriamente. Correctamente ditos deviam dizer-se barcas.   E estas, nem todas, mas quase todas, são femininas:   não são os barcos da guerra, porque são masculinos, cinzentos, feios, transportam a morte por passageira e como tal não têm nenhuma propriedade feminina.  O “meu coração ” é uma barca angulosa, esguia, e dadas as circunstâncias, dentro da sua humildade de barco de pobre, comedidamente sensual. Os marinheiros que a embarcam não têm pensamentos desta dimensão, mas haverá com certeza alguém, mais fleumático, com pachorra para abstrações, senta

HÁ NOTÍCIA DE QUE A GUERRA ACABOU

Os homens, exaustos, terminaram todas as guerras num dia esplêndido de sol, dia que estava a pedir um piquenique no campo. Havia ainda flores, cores. E abelhas.  Não se tendo dado conta da sua ausência, o ruído foi de tal ordem com o passar ininterrupto dos aviões e dos mísseis balísticos - que nunca se ouviria o chilrear - agora percebia-se claramente a sua presença no céu, e pousando nas árvores.  Os pássaros. Os homens, em acordo, depuseram as armas, atiraram os pesados capacetes para longe da vista, abriram os botões dos dólmens, descalçaram-se deixando ver os dedos a saírem de meias rotas. Acenaram e assobiaram alto para todos os que estavam no outro lado. Estes acenaram e assobiaram igualmente. Em todo o sítio e em todas as guerras estes procedimentos foram seguidos para os que estavam nos lados opostos, com respostas muitos positivas. Animadoras. Depois de reunidos todos os homens, sobrantes das longas guerras em curso, fossem elas pequenas ou grande

O HOMEM QUE QUERIA VER O MAR - O DIA

Quando um homem se deita com muita coisa por pensar, acrescenta novos pensamentos aos que estão em carteira, chega a atafulhar-se, escasseando tempo para os pensar a todos, devidamente. Tertuliano esgotou as horas da sua primeira noite no bairro à margem da cidade, fazendo a contabilidade dos pensamentos, pondo uns na folha do deve, outros na do haver, os antigos, os novos, outros em trânsitos contabilísticos, tudo isto feito rigorosamente, porque nas folhas dos guarda-livros, faltar um tostão ou mil reis é de igual gravidade. Tertuliano é um homem meticuloso, não é picuinhas, é arrumado de cabeça e propósitos. Esse prestar de contas, chame-se assim, porque Tertuliano despediu-se do papel que lhe deram para representar e escolheu um novo. Ninguém nas altas esferas celestes estava a contar com isso. Veio com a missão de ser pastor de rebanhos, agora quer ser marinheiro. Uma decisão pessoal desse calibre, em rebeldia, deixa poeiras que devem ser varridas. Foi o que fez nessa