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QUERO, MAS OUTROS DECIDEM POR MIM. Uma reflexão sobre a vida e a morte

Quero morrer. Sobretudo, estou cansado, tanto. Estou cansado e é tão valioso esse sofrimento como estar eufórico. São coisas de cada um, íntimas, e sendo seguidor da tradição - que não se discute - relembro um ditado que diz” entre o homem e a mulher não se mete a colher”. Decisões destas, que só se toma uma vez na vida, ou nunca, são assuntos caseiros. Da cabeça de cada um, que dando a falsa impressão de os pensamentos serem um encadeamento monocórdio e de monólogos, isso não é verdade. São uma conversa interior, como um assunto de marido e de mulher. É por isso que eu quero morrer, por estar num túnel sem saída que se veja, não saindo do mesmo sítio. Não que o queira, todos queremos é viver, mas quando as condições se põem descaradamente insuportáveis, sejam pelo fastio absoluto do estado de continuar vivo, com o depósito da alegria vazio, então, quero mesmo morrer. Quero fazê-lo sem incómodos para ninguém. Para os diáconos que os dispensei há muito. Quero morre

XADREZ

Joguei as mais desabridas partidas de xadrez sem saber jogar. Fi-lo por deferência ao meu anfitrião, para aliviá-lo do tédio e pagar-lhe dessa forma, ainda que desonestamente (eu não sabia jogar e disse que sim), o seu acolhimento. Claro que quando movi as primeiras peças, na primeira partida, ele entendeu a minha trapaça, mas perdoou, e sem nunca o ter dado a entender, com uma grande delicadeza foi-me ensinando xadrez, com sotaque basco. Houve mesmo um dia, que me deixou ganhar. Aí entendi eu que a vida não nos traz coincidências e que mesmo os acasos são jogadas que o grande jogador de xadrez tem preparadas para nós. Tudo isso a conteceu num tempo já a matizar as memórias, num tempo em que um bom jogador de xadrez com uma vida entediada, me abrigou dos desconhecidos, dos medos muitos da desassossegada aventura de ser adulto. A ti, José, onde estejas.

CELEBRAR A VIDA

Este sim, um festim.  Pela manhã, até ao limite de ser manhã, o dia que neste dia tem a tarefa de carregar o mundo para que todas as coisas sigam em frente,  ainda dá fortes indícios de pureza,  antes da poluição das futilidades nos dificultar a  a respiração e o desanuviamento.

LER, OBSERVAR E ALFACE

Num jardim, no meio da cidade, não propriamente o meio, mas dizendo dessa forma se somos levados a pensar com detalhe -   um preciosismo -, no jardim onde uma mulher lê livros e eu observo e denuncio, duas jovens quase obesas comem saladas. Elas são jovens para isso e não parecem gostar de ser, a menos que estejam a enganar. Essas saladas acondicionadas em contentores de plástico comprados no chinês, foram confecionadas pessoalmente, sendo fresquíssimas depois das alfaces terem vindo anteontem das Filipinas e o ananás ter estado em trânsito na Islândia depois de ter sido colhido há dez dias na Colômbia. Elas estão sentadas num parapeito e aparentemente satisfeitas, a contento da ordem pública, conceito que não existe em democracia. Cada um faz o que democraticamente quer sem ser multado. Quem acredita em teorias de conspiração, vê   esses filmes até em minudências, e diria que há uma conexão obvia entre as pessoas curiosas que estão em jardins ou noutros lugar

RALÉ

Não há poética em dizer isto: todos os homens são fundamentais ao andamento do mundo, menos a ralé, que são pústulas das sociedades, dejectos das classes, se ainda há isso. A ralé é a franja de gente periférica à existência humana, cada vez em maior número, que alimenta o extremismo, a ascenção com pés de lã dos totalitários. Sejam de que género e feitio forem: do futebol de praia aos bailes de debutantes nos salões do poder, a ralé está de novo a preencher os lugares vazios, multiplicando-se muito. As elites, alimentam as ralés, interessa-lhes, pois são os que estão disponíveis para abdicarem das ideologias, para não terem de pensar. São bem mandados a tudo o que fizer falta, por um simples mandar sem explicações. O seu reconhecimento é grupal, daí primitivo, por não se darem disponibilidade de se abrirem aos outros, diferentes. Recompensam-se no seu seio poluído, pelo número de feitos de malvadez praticados. Foi assim há setenta e nove anos. As elites

VÉUS*

Vestem escuro, vivem de negro. uma formalidade. Sorrindo e que alguém o possa vir a saber: que sorriram, porque não testemunham o sorriso. Um véu tapa-lhes essa possibilidade e o mundo, que queria tanto, nunca ajuizará a pureza desse rasgar genuíno de uma boca escondida. Praticamente só sobressaem os olhos, igualmente negros, grandes e muito redondos e perscrutadores, azeviche, pouco mais é dado a ver. O sinal de uma vida envolta dos pés à cabeça, em camadas de preto, por véus quasi-transparentes   que sobrepostos são opacos. E como só despontam os olhos, concentram neles toda a sua energia, a comunicação inteira de um corpo, que quer escapar mas não pode. Imagina-se que aquele corpo que se imagina, tem os seus ângulos, uma harmonia. Imagina-se também que tem recônditos abrigados, outros menos. Aos olhos exteriores do desconhecido que os observa, não têm forma, são voláteis. Corpos fantasmagóricos, espectros à luz do dia. Corpos escondidos, entaipados, recolhidos em

PENSAMENTO DA SEMANA

"O homem quer erguer ao mais alto o seu valor. E a forma mais eficaz para isso é a de se rebaixar. Porque quanto mais baixo ele estiver, maior a altura do seu Absoluto." Virgílio Ferreira - um escritor demasiado esauecido.