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Mensagens

PREGUIÇA

A preguiça é um bálsamo ou um impedimento. Normalmente os preguiçosos dão-se bem sozinhos. Quando se juntam e dependendo do tamanho em número do agrupamento, podem causar grandes estragos. Há, imagine-se, países só de preguiçosos, continentes mais afeitos à preguiça do que outros. Não se podem enumerar para não causar incidentes diplomáticos, até porque há alguns que o sendo, não dão ao conhecimento, o que deixa os seus vizinhos na dúvida, e deixam passar. Esses países - como os preguiçosos em nome individual - aceitam bem as esmolas, precisam delas, e os dadores têm-nos assim na mão, o que explica a lei universal do equilíbrio de todas as coisas existentes: um dá, outro recebe, e  reina a harmonia. Ela é um bálsamo porque desresponsabiliza o seu utilizador: não poderá ser achacado de nada, nenhuma acção, boa ou má, conseguida, não conseguida, já que se encontra em inação propositada desde pequeno ou desde que decidiu ser assim. Este tipo de preguiçosos – os ba

APANHAR SOL

O senhor M não é taciturno, aprecia o sol. Em dias que são decisão sua, reunidas as condições, intrinsecamente pessoais, estende-se numa cadeira de lona, e lê livros. Com ou sem manta. O tempo que for preciso, seu. Os dois: a cadeira fidelíssima (há cadeiras cujo elogio de serem fiéis é mais do que merecido) e ele, gozando do privilégio da imobilidade consciente, estacionam-se na varanda para usufruírem desempoeiradamente o privilégio de uma vista escandalosa da cidade. Escandalosa é demais, mas tem que se dizer assim para captar. Em dias luminosos e limpos, esticado como múmia em estado vivo (para se ter uma ideia aproximada, não da sua situação futuramente definitiva, mas dos preparos em que se põe no presente), jaz irrepreensivelmente hirto na cadeira estilo colonial, e lê. Lê descomplicadamente. O sol de dias assim, ocupa-lhe por inteiro a cabeça, muito intenso. De tal forma, que se torna difícil tomar atenção, lê temas ligeiros. Se o sol bate de chapa, não

POR ESPANHA

Há uma certa Espanha que não muda, há também um Portugal assim (o nosso é de delicodoces e amaneirado), e tem um nome: tradição e pó. Presumindo-se de moderna, continua senhorial, com traças. Mascara-se de democrática, transveste-se de tolerante. Um engodo para fora, uma falácia para si mesma. Tudo isso já causou muitos sofrimentos e mortes num passado, a dar a entender que se esqueceu, e é possível que se tenha esquecido. Aquela fotografia da morte de um miliciano – naquela que foi a vossa pior guerra, se há alguma pior que outra, uma guerra de irmãos - parece que agora não passa de um postal bem conseguido. Nada mais do que isso: uma fonte de “ likes” e comentários mal redigidos nessas redes que agora aprisionam todos. Talvez os mais novos, não saibam o que foi esse momento de trevas e o que representa aquela morte. Talvez a culpa seja dos pais que não tiveram a paciência de contar a História. No espaço tão imediato como um instantâneo, a Espanha moderna, aber

O CONHECIMENTO

                           Vilhelm Hammershøi

UMA CASA NO CAMPO

À espera que o tempo passe. É isso. E não o veja. Fazer-se esquecido, de morto. Foi a melhor lição que o falecido pai lhe deixou: “filho, faz-te sempre de morto”. Os espertos, não são os que falam melhor, são os que se fingem mudos. Não se dá por eles, e nos momentos certos aparecem nas comemorações para reclamar o prémio. De resistentes, de vividos. Foi o que fez. Deixou-se ficar, a fazer sombra nas esquinas dos gabinetes escuros dos grandes edifícios antigos da Administração Pública. Devagarmente , sem pressa nenhuma, a coleccionar cruzes em calendários dos dias, para a reforma. O sonho. A sua resiliência e falta de vontade natural deram-lhe todas as progressões possíveis na burocracia do sistema. Outros, mais ambiciosos perdiam a paciência, desistiam, iam-se embora para a privada, ou pediam mudança de funções, de local de trabalho. E como os lugares ficavam vagos, aproveitava-os ele. Foi longe, sem saber fazer nada: um homem sem préstimos com uma folha de serviço imaculada

FARTEI-ME

Insultei-me apropriadamente com vernáculo feio, cheguei a gritar e a partir alguns tarecos da minha colecção pessoal dos objectos da família, alguns absolutamente inúteis que se guardam sem nenhuma lógica, só porque são uma recordação com valor sentimental, uma herança, um legado, uma passagem de testemunho, o que seja. um remendo para as nossas nostalgias, como o preenchimento com massa dos buracos da parede quando se tiram os quadros e se quer restituir uma virgindade de branco para tranquilizar os inquilinos que nos vêm substituir, convencendo-os da excelente aquisição que acabam de fazer, ou seja, mentiras piedosas para nos sossegarem a consciência. Fartei-me como que a fazer uma declaração de princípio, afinal mais uma declaração de final. Uma justificação vital da minha vida, passada grande parte dela em cenários em que todos me enganam oferecendo falaciosas liberdades, “agora é que isto vai ser bom”, todos a decidirem o caminho de todos, em igualdade, em fraternid

O HOMEM

Um tédio, escrever. Se era só para si, por que fazê-lo, se punha e dispunha em privado desse eco na cabeça? Por que passar ao papel quando se perde tanto na tradução do pensamento? Deu-se conta disso, não do tédio, quando se viu - uma vidência instantânea e sorte em tê-la -, atafulhado de coisas escritas. Uma acumulação como outra qualquer.  Não de colecionador.  Um juntar sem um objectivo, nas gavetas, em prateleiras, caixas. Para amanhã, que amanhã?  Guarda-se com medo de perder, ou então, por pudicícia, a modéstia dos ingénuos. No seu caso, não guarda por nenhuma razão especial a não ser o facto incontornável – para si – de que não consegue fazer outra coisa senão escrever, independentemente do descrédito de sentir que exerce com carácter de regularidade diária, uma pulsão, de absoluta inutilidade. Não a abandonar, destruindo o produto dessa promiscuídade, era a forma airosa -coisa neutra - de se desculpar por não ter desenvolvido habilidade para actividades